quarta-feira, 26 de junho de 2013

ATRASO


Acordou em um salto com o despertador gritando. Os olhos pareciam cheios de areia. Pegou o relógio ao lado da cama e viu o horário. 7:04. Deveria ter se levantado às 6:20. Colocara o relógio para despertar às 6:20. Pelo menos assim imaginara. Mas é claro que tinha feito isso! Por que colocaria o relógio para despertar às 7:04? Ainda mais sabendo que seu amigo o esperaria às 7:30. Com certeza o relógio deveria estar despertando havia muito tempo, mas o sono era tão pesado que não surtiu efeito algum. 

Jogou o cobertor de lado e levantou-se, ainda meio confuso. Sabia que teria que ser rápido, mas o corpo simplesmente não respondia. Na verdade, nem seu cérebro parecia saber muito bem o que fazer. Apanhou o remédio e foi pra cozinha pegar um copo d'água. Os olhos insistiam em arder fortemente. As pernas, ainda lentas, mal tinham força para levantar os pés. Trombou na porta da cozinha e uma dor aguda tomou conta de seu braço direito. Pegou um pouco d'água e virou de uma só vez, junto com o pequeno comprimido alaranjado. 

Foi para o banheiro, mas nem a água fria parecia eficaz em acordá-lo de forma adequada. Escovou os dentes. Os olhos ainda ardiam. Parou um instante em frente ao espelho e tentou ver se havia algo mais causando aquela irritação toda. Mas não tinha nada. Era apenas o sono realmente. Mas por que fora dormir tão tarde na noite anterior? E agora o trânsito devia estar terrível. É sempre assim nas segundas-feiras. Oh céus! Logo hoje?

Voltou ao quarto para pegar a roupa e tomar um banho. Talvez isso resolvesse. Seria provável que não. Nem água seria suficiente para aplacar o sono. Apenas três horas e meia de descanso não tinham sido suficientes. Ele sabia disso. Passaria o dia todo naquele estado. As pessoas iriam dizer-lhe algo, mas nem prestaria atenção. Após o almoço seria ainda pior. Já estava virando rotina. Pelo menos três vezes por semana acabava dormindo muito tarde e passava o dia todo um pouco aéreo, como diziam os amigos do trabalho.

Pegou o celular. 7:17. Não daria tempo de tomar banho. Nem de comer nada. Como odiava sair sem comer nada. Era uma das poucas coisas que tirava seu bom humor. Talvez fosse a única. Talvez não a única, mas a principal. Não importava. Que isso lhe tirava o bom humor, isso tirava. E teria que acabar comendo algo na cantina próxima ao trabalho. Mas tudo lá era horrível. Aquele café extremamente doce. E tão fraco. Ah, como era era aguado. Só o dono mesmo pra chamar de café aquela coisa. E não daria tempo nem de tomar um banho decente. Por que dormir tão tarde? Essa rotina não pode mais perdurar. Aquela noite mesmo começaria a impor horários mais severos para se deitar. Mas quem estava enganando? Já havia prometido a si mesmo inúmeras vezes que isso não se repetiria. Mas dessa vez ia tentar dar cabo dessa tarefa.

Pegou a roupa. 7:21. Já era. Não iria mais com o amigo. Era melhor chegar atrasado, mas se arrumar direito. Pegou o celular e mandou uma mensagem. Cara, pode ir sem mim. Mas assim pareceria que algo sério tinha acontecido. Ou que estava bravo. A última coisa que precisava a essa altura era ter que dar explicações. Cara, acabei perdendo a hora...pode ir que vou de ônibus mesmo. Agora podia se arrumar mais tranquilo. Nem tão tranquilo assim. Mas com um pouco mais de calma. Puxou a toalha e foi tomar um banho. Ainda teria que ser rápido, mas pelo menos não teria ninguém esperando por ele. Era só arrumar uma desculpa para o atraso quando chegasse ao trabalho. 

Saiu do banho. Até que havia funcionado. Sentia-se mais desperto agora. Acelerou o passo e saiu de casa comendo uma maçã. De qualquer forma era inevitável que fosse até cantina tomar um café. Mas como alguém podia gostar daquele café? Não importava. Hoje teria que tomar café lá mesmo. Mais uma vez.

Virou apressadamente a primeira rua à esquerda e subiu uma pequena ladeira. Não poderia nem acender um cigarro hoje. Isso só ia acontecer quando chegasse ao trabalho. Pelo menos pode esconder o gosto horrível do café. Seria trocar um gosto horrível por outro. Mas pelo menos já estava habituado ao gosto horrível do cigarro. Tinha que largar aquilo. Fazia tempo que estava tentando parar de fumar. Mas como era difícil! Se imaginasse isso antes não teria nem começado. Mas a coisa foi ficando cada vez mais difícil. Quando se deu conta, não conseguia ficar mais que dois dias livre do vício. No último ano conseguira ficar quatro meses sem colocar um único cigarro na boca. Mas o estresse acabou fazendo com que voltasse. Ah, o estresse! Sempre ele. 

Parou no ponto de ônibus ofegante. Precisava mesmo parar de fumar. Por sorte, não precisou esperar mais que cinco minutos. Entrou apressado. Como sempre, estava lotado. Espremeu-se junto aos passageiros. Não conseguia entender por que motivo as pessoas continuavam com as mochilas nas costas. Se todos tirassem-nas e as segurassem nas mãos ocupariam muito menos espaço. Finalmente parou em frente à porta de trás. Se agarrou firme e colocou a mochila no chão, mantendo-a entre os pés. Puxou os fones de ouvido e ligou o celular. Rolling Stones! Isso! Era uma boa pedida pra começar a semana. Daria uma animada. Mas Wild Horses não seria a mais indicada. Pulou mais algumas músicas e parou em Rocks Off. Agora sim! A segunda-feira seria um pouco atenuada.    

Se distraiu com as músicas e nem percebeu a movimentação ao seu redor. Todos olhando pelas janelas. Correu os olhos em volta e percebeu que estavam parados. O trânsito permanecia completamente inerte. Se deu conta que havia acontecido algum acidente, ou algo assim. Bem na esquina em que ele costumava esperar o amigo. Após alguns minutos as pessoas começaram a descer do ônibus para ver o que havia acontecido. Como as pessoas gostavam de tragédias. Era sempre assim. Mas acabaram se acotovelando na saída em que ele estava. Decidiu que seria melhor também descer.  

Do lado de fora avistou uma multidão na esquina. Já que havia descido, seguiu até lá. Agora os fones tocavam Gimme Shelter. Andou os poucos metros pela calçada, prestando mais atenção na música que na movimentação ao seu redor. Parou atrás das pessoas e viu que havia alguma fumaça. Agora era pouca, mas parecia ter sido bem maior antes. Sentiu uma mão no seu ombro. Era o amigo que lhe dava carona. 

- Você está bem? Graças a Deus! Achei que você estava lá...pensei que, que...
Lágrimas começaram a correr sob seus olhos. Mas por que ele estava tão desesperado? Não, não era desespero. Era alívio. Demorou a tomar coincidência de que o amigo não havia recebido a mensagem. Tirou os fones do ouvido, pouco antes do amigo o abraçar.

- Eu te mandei uma mensagem avisando que me atrasaria e você podia ir na frente. Não recebeu?

- Esqueci meu celular em casa. Quando cheguei aqui e vi a fumaça, achei que você estava lá, como todo dia. Que alívio te ver agora. Você nem imagina.

- Mas o que foi que aconteceu?

- O posto de gasolina do lado. Não sabem muito bem o que causou, mas houve uma explosão. Disseram que uma pessoa estava na esquina bem na hora. Parado. Eu tive certeza que era você. Oh, meu Deus! Ainda bem que você se atrasou. Justo hoje, você se atrasou. Não é muita sorte?

Foi então que tomou conta da sorte. Nunca havia se atrasado. Sempre apressava-se ao máximo para chegar ao local na hora marcada. Uma das poucas coisas que lhe tirava o bom humor era esperar alguém. Bem, isso e ficar com fome. Na verdade haviam outras coisas, mas essa era bastante substancial. Mas, realmente, fora a primeira vez que perdera a hora. Na verdade, não perdera a hora. O relógio ainda marcava o horário de 6:20 para despertar. Mas por que raios ele simplesmente não havia acordado? Durante quase uma hora o som penetrou em seu sono e ele nem se tocou? Tinha facilidade de dormir, mas o sono não era assim tão pesado. Havia se deitado tarde na noite anterior, é verdade, mas isso nunca impediu que acordasse. Às vezes até com o telefone tocando na sala, do outro lado da casa. Era muita coincidência! Mas coinscidências existem? Alguns dizem que não. Ele nunca havia acreditado em destino ou algo do tipo, mas naquele dia havia sido salvo exatamente por esse destino. Ou coincidência. Ficou imóvel junto ao amigo, pensando em quem estaria ali na hora da explosão. Qual daquelas pessoas desconhecidas que lhe faziam companhia todas as manhãs também esperando alguém para pegar uma carona teria sido? Qual dessas pessoas o destino e a coincidência conspiraram contra?

A GUARDIÃ


Já passava das 23:45 quando resolveu enfim se deitar.  Sabia que deveria ter se recolhido antes, pois seria difícil acordar no dia seguinte para a aula de Educação Física, mas o filme que estava assistindo na TV acabou sendo surpreendentemente interessante. Puxou o cobertor que estava ao pé de sua cama. Mesmo no breu total em que se encontrava sabia exatamente onde estava cada objeto. Passava as noites na casa da avó, que já tinha certa idade e a forma metódica como a senhora organizava a casa às vezes lhe parecia engraçado. O sono não demorou a aparecer e acabou adormecendo antes mesmo de terminar a lista de orações que fazia automaticamente todas as noites.

Acordou de repente sem ter ideia de que horas eram. Ainda tinha as últimas palavras da última oração na memória. Demorou certo tempo até entender o que o havia feito despertar. Na sala ao lado ouviu a madeira do piso rangir lentamente. No princípio comprimiu os olhos na tentativa de identificar algo, mas a escuridão era completa e nem um mínimo fio de luz o ajudava nessa empreitada. Os ruídos se tornaram mais audíveis. Agora era fácil entender o que acontecia. Todo aquele som era causado pela movimentação de algo sobre as velhas tábuas de madeira, já meio soltas do piso da sala.

No início tentou reforçar a si mesmo que se tratava de rangidos normais, que aconteciam pela mudança de temperatura durante a noite. Mas o ritmo dos ruídos deixou-o cada vez mais convencido de que se tratava do peso de algo. E esta coisa se movia lentamente. O frio começou a lhe percorrer a espinha e sentiu o coração disparar. Os passos se tornaram mais próximos da porta de seu quarto.

Pensou em chamar por alguém para se certificar que não era sua avó que estava andando pela casa, mas sua consciência tratou de lhe tirar essa ideia. Ela nunca andaria no escuro, por se tratar de uma senhora de idade avançada que caminhava com certa dificuldade. Ao chegar em frente à porta de seu quarto os ruídos cessaram. Nesse momento, pensou em se levantar e acender a luz do quarto para checar do que se tratava, mas ouviu a porta do quarto se abrindo lentamente e a tábua mais próxima da entrada rangiu de forma mais aguda, como sempre acontecia quando lá entravam.

Seus músculos se tornaram totalmente rígidos e a respiração falhou. O coração batia tão alto que quase abafava os rangidos que começaram novamente. Mas agora estavam mais próximos de sua cama. Tentou gritar, mas não conseguia emitir nenhum ruído, por mais baixo que fosse. Pensou em se levantar e correr, mas seus músculos não respondiam. Ficou ali deitado, totalmente imóvel, o coração disparado e a respiração inconstante.

Ainda tentava dizer a si mesmo e a seu corpo que tudo aquilo era pura imaginação, talvez algum animal que estava rastejando abaixo do assoalho da velha casa da avó. Mas quando os ruídos deram lugar ao peso de algo se movendo ao pé de sua cama, qualquer pensamento racional simplesmente desapareceu diante da realidade dos fatos. Realmente havia algo naquele quarto, e se dirigia direto para ele. Agora o frio não estava apenas em sua espinha, mas se espalhara por todo o corpo. Os músculos se tornaram ainda mais rígidos e o estômago doía de tão contraído. Cada vez que o colchão se abaixava com o peso da criatura se aproximando lentamente dele era como se uma pontada de dor atravessasse seus músculos. Sentia o ar lhe faltar em meio àquela avalanche de emoções.

Quando o colchão já estava se comprimindo muito perto de sua perna, por cima do velho cobertor, ouviu o ruído emitido pelo causador de toda aquela angústia. Em uma fração de segundos seu corpo pareceu voltar ao normal. Reconheceu aquilo como o simples miado de um gato. Na verdade, uma gata. O pequeno animal de estimação de sua avó costumava entrar sorrateiramente pela casa à noite e inúmeras vezes havia acordado com o bichano aos pés de sua cama pela manhã.

Só teve uma reação. Abraçou o pequeno animal em uma descarga de adrenalina pelo alívio. Depois começou a gargalhar de si mesmo, de sua inocência em imaginar que pudesse ser algo sobrenatural e nem passar por sua cabeça que era apenas a pequena gata, fazendo o que sempre fazia. Tudo devia ter durado menos de um minuto, que lhe pareceram uma eternidade agonizante. Terminou as orações que ficaram pela metade e finalmente adormeceu, com os músculos exaustos, mas a mente tranquila.

Acordou no horário habitual, com sua avó batendo à porta. Colocou o uniforme, tomou um café rápido, pois não se sentia muito bem praticando esportes após se esbaldar com as bolachas e bolos feitos pela senhora. No portão estava a gata. Passou a mão sobre sua cabeça e saiu. Na casa da esquina, a estranha vizinha lhe olhava diretamente. Sua avó não gostava muito dela, mas era tudo implicância por se tratar de uma senhora que seguia outra religião. Era uma médium muito conhecida na pequena cidade. Embora vivesse sozinha, sempre recebia visitas de diversas pessoas que vinham buscar ajuda espiritual. Estava quase em frente ao portão quando a senhora lhe chamou. 

- Você poderia me ajudar um momento?

- Poderia ser mais tarde? Já me atrasei demais para minha aula - respondeu com um sorriso simpático.

- Será breve. É que um de meus gatos acabou se prendendo em uma fita e não consigo tirá-lo dele, suplicou a senhora.

Entrou no quintal da casa e foi até onde o pequeno animal estava preso por um barbante junto à cerca da casa. De tão apertado a pequena mão com finos pelos brancos tinha um tom rosado pelo sangue que não circulava. Embora um pouco assustado, o animal permitiu que a aproximação e cortasse o barbante, com cuidado para não feri-lo ainda mais. Após terminar o trabalho se virou para a senhora, entregou-lhe o bichano e foi saindo. Foi quando notou que havia pelo menos mais uma meia dúzia de gatos no quintal. 

- A senhora gosta mesmo de gatos - falou já a caminho do portão. 

- Sim, sempre mantenho vários perto de mim. Gatos têm uma relação muito forte com o mundo sobrenatural - explicou a senhora. 

Com a surpresa da resposta, não se conteve. 

- Dessa eu não sabia, embora já tenham me falado isso sobre cães - completou.

- Ah, os cães sentem muitas coisas, e nos avisam delas quando latem para o nada - disse a senhora em tom de educadora. 

Já estava no portão quando a senhora colocou as mãos sobre seus ombros. 

- Mas os gatos são como guardiões. Eles não só sentem as manifestações de outros planos, como nos protegem das entidades malignas. Por isso é bom sempre ter um desses perto de você. Se algo tiver a intenção lhe causar algum mal, o gato virá até você para lhe proteger. Mas isso você já sabe, não é mesmo?

Após manter os olhos fixos por algum tempo, a senhora fechou o portão e entrou na casa. Do lado de fora pensamentos inundaram sua cabeça. Permaneceu imóvel na rua, com o frio lhe percorrendo novamente a espinha.