segunda-feira, 29 de julho de 2013

FAVOR MANTER O SILÊNCIO

Mariana e Mônica eram primas, mas de tão unidas, pareciam mais irmãs. A diferença de idade entre elas era de pouco mais de um ano. Sempre foram muito próximas. Desde a infância dividiam todos os segredos. Agora então, no auge da adolescência, não se desgrudavam nunca. Talvez porque, por hora, os segredos eram mais constantes e os assuntos mais urgentes. Assim como é tudo nessa fase da vida.

Mais uma tarde estavam sentadas sobre a cama conversando. As altas gargalhadas inundavam toda a casa. Sorte delas que naquele dia a mãe de Mônica havia saído cedo e não retornara até então. Primeiro que poderiam conversar à vontade sobre qualquer assunto sem serem interrompidas. Ou pior, sem correr o risco de que alguém acabasse por se inteirar do assunto. Mas não era só por isso. A mãe de Mônica tinha o hábito de assistir novela até quase o anoitecer. Sempre que as garotas exageravam no tom da voz ou dos risos, uma bronca ecoava pela casa toda.

Quando eram crianças, a senhora tinha a mania de botar-lhes medo, dizendo que haviam espíritos na casa e que se continuassem com a algazarra iriam incomodá-los. E, quando essas entidades eram perturbadas, faziam de tudo para que a paz voltasse ao local. Geralmente isso era o bastante para que as garotas não apenas diminuíssem o volume da voz, como para que se agarrassem à saia da senhora e, seja lá o que estivessem tratando, tinha um fim repentino. Mas agora, mais crescidas, essas baboseiras não tinham mais importância.

Já devia ter umas duas horas que elas estavam ali, sentadas sobre a cama com os travesseiros no colo. Vez ou outra uma garota esticava a perna que havia ficado dormente pela falta de circulação, mas nunca davam uma pequena pausa sequer na conversa. O alvoroço causado pelas confissões de ambas ecoava por toda a casa naquele dia. Talvez até da rua fosse possível ouvir suas risadas um tanto quanto insanas até. Em meio a um assunto e outro pararam quando pareceram ter ouvido batidas na porta. Se entreolharam, mas voltaram a conversar sem dar muita consideração àquilo. Logo os gritos inundavam todo o ambiente mais uma vez e novamente ouviram algo bater na porta, mas dessa vez com mais veemência.

Mônica se levantou para ver o que era. Do lado de fora não havia nada. Permaneceu alguns minutos na posição em que estava. Um pé para o lado de fora do quarto, escorada na imensa porta de madeira. Apertou os olhos, mas não observou nada. Encostou a porta mais uma vez e sentou-se na cama. Mal as meninas retomaram os mexericos, a porta vibrou fortemente. Dessa vez foi apenas uma única batida, mas com uma potência incrível.

- Estou ficando com medo, Mônica.

- Deixe de besteira, Mari. A mãe deve ter deixado alguma janela aberta e o vento está fazendo esta porta maldita bater sem parar. Você sabe como venta nessa época do ano por aqui.

- Sim, mas não ouço nenhum som de vento lá fora. E além disso...bem, só essa porta bateu. Estou achando isso muito estranho.

- Ah meu Deus! Vai ficar com medo de assombração agora?

- Não é medo. É uma questão de respeito. Não acredito que essas coisas existam, mas prefiro não tirar a prova.

- Pra mim isso é tudo desculpa de quem está se remoendo por dentro. Se quiser ir pra casa eu te acompanho, caso tenha tanto pavor assim de andar por aí a essa hora da tarde - disse Mônica com um sorriso no canto dos lábios.

- Vamos lá dentro fechar essa maldita janela então. Além do que, não dá para conversar direito com essa bateção de portas a todo momento.

As duas percorreram todos os aposentos, mas nenhuma janela estava aberta e sequer uma corrente de ar foi encontrada. Mariana ficava cada vez mais tensa com aquela situação. Entretanto, não deixaria transparecer isso para a prima. Era bem capaz que aquilo tudo fosse alguma traquinagem de Mônica para assustá-la. Diversas vezes havia caído nas peças da prima, que adorava causar esse pavor nela. Mas dessa vez não iria ceder tão fácil.

Voltaram ao quarto e conversaram sobre o último baile. Enquanto falavam dos garotos mantiveram o tom contido, mas assim que o assunto migrou para os vestidos das outras garotas, a entonação se alterou totalmente. Agora as meninas berravam. Chegaram a ficar sem ar com os comentários maldosos que teceram. Só cessaram o som com mais uma terrível batida na porta. Porém desse vez, Mônica se levantou rapidamente para ver o que era. Do lado de fora, mais uma vez, não havia nada. Apertou bem os olhos, mas continuou sem nenhum resultado. Encostou a porta mais uma vez. Mal as meninas retomaram as fofocas, a porta vibrou fortemente. Dessa vez a batida veio seguida de um "psiu" enérgico.

As garotas se entreolharam durante algum tempo, com a respiração esparsa e um arrepio no corpo. Mas Mônica era muito orgulhosa para confessar o medo que também lhe tomara conta naquele instante. Levantou-se mais uma vez e seguiu na direção da porta, com a cara fechada e uma determinação inabalável. Abriu a porta com tudo e ficou alguns instantes parada naquela posição. Colocou a mão na cintura e deu uma fungada.

- Quem está fazendo essa brincadeira?

Não houve nenhuma resposta. Tudo permaneceu calmo e tranquilo no resto da casa.

- Vamos! Responda! Quem pensa que vai nos fazer medo a essa hora da tarde? Já estou perdendo a paciência!

- Mônica, pare com isso. Volte aqui e vamos controlar o tom de nossa voz durante a conversa.

-Está com medinho, Mari? É claro que isso é meu irmão que já chegou em casa e está brincando com a gente.

- Então deixe ele pra lá e feche essa porta logo. Não estou gostando nada disso.

Mônica fechou a porta e entrou batendo o pé fortemente no chão de madeira. O estardalhaço causado por aquilo era incrível. Nem bem havia se aproximado da cama um estrondo inundou o quarto. O som foi terrível e as garotas levaram um certo tempo até compreender o que havia se sucedido. Bem no meio do quarto havia uma pedra enrolada em papel.

- De onde veio isso? - perguntou Mariana já apavorada.

- Não vi - completou Mônica, ainda meio sem compreender como aquilo havia ido parar ali.

- Mônica, este cômodo está completamente fechado. Não teria como uma pedra desse tamanho ser atirada aqui da forma como aconteceu. Vamos sair daqui logo e esperamos sua mãe lá na frente da casa.

- Pare já com isso, Mari. Não vê que isso tudo é coisa do meu irmão? Ele só está tentando deixar a gente com medo. Bem, você ele já conseguiu, mas eu não vou entregar os pontos assim tão facilmente. Ah, não vou mesmo.

- Não precisa ser tão corajosa sempre. Pense comigo. Como seu irmão teria jogado uma pedra dessas aqui, se tudo está devidamente cerrado em volta?

- Ele deve ter amarrado isso no teto mais cedo e acabamos nem percebendo.

- Amarrar uma pedra no teto? Com que intuito ele faria isso. E, pior, como poderia controlar para que ela caísse bem agora? Isso não tem a menor lógica.

- E o que tem lógica então, Mari? Acreditar que alguma coisa do além atirou essa pedra aqui dentro do quarto? Isso não me parece em nada uma suposição mais plausível.

Enquanto Mariana permanecia enrolada nas cobertas e morta de medo, a prima se abaixou e pegou a pedra na mão. Desenrolou o papel que a embrulhava e abriu-o com cuidado. Deu uma boa olhada e mostrou-o para a prima. "Favor manter o silêncio", eram os dizeres.

- Ainda acha que não é coisa do Bruno mesmo? Olhe essa letra! É dele, tenho certeza - disse Mônica tentando convencer a prima de que tudo não passava de uma grande brincadeira do irmão mais novo.

-  Tem certeza que a letra é mesmo dele?

- Absoluta. Eu reconheceria esse garrancho maldito até no escuro.

- Fico mais aliviada, mas ainda não compreendo como ele conseguiu colocar essa pedra lá em cima.

- Mas isso ele vai ter que nos explicar direitinho. Ou melhor, vai ter que explicar muito bem pra nossa mãe a hora que ela voltar - concluiu dizendo a última parte com a voz bastante alterada, quase gritando.

Novamente, um murro quase abriu a porta, seguido de um longo e arrastado grito de "Silêncio". Mariana sentiu todo o corpo estremecer de pânico. O frio percorreu toda a espinha e os braços se arrepiaram como nunca antes havia pensado ser possível. Já Mônica foi enfurecida na direção da porta. Abriu-a com tanta violência que a mesma quase se quebrou ao bater na parede. O ruído seco ecoou por toda a casa.

- Já chega dessa palhaçada! Nós não temos medo, ouviu? Por que não para com essa idiotice toda e aparece aqui na nossa frente para tomar uma lição. Vamos! Apareça aqui seu verme!

Mônica não pode continuar os insultos, pois foi interrompida por um grito muito estridente de Mariana, às suas costas. Virou-se e viu a prima paralisada olhando na direção do guarda-roupas. Se virou para aquele lado e lá estava uma senhora, pairando a alguns centímetros do chão. O vestido em trapos, que outrora havia sido de um azul profundo, mostrava algumas manchas escuras. Ela encarou Mônica nos olhos. Mesmo sem dizer nada, era clara a fúria em seu olhar. A coragem da garota se foi por completa e lágrimas escaparam acidentalmente de seus olhos. Tentou gritar ao passo que aquilo se aproximava dela, mas seus músculos não respondiam. Quando sentiu aqueles dedos finos e gélidos lhe tocarem os ombros, tudo se tornou uma profunda escuridão.

Abriu os olhos e estava deitada em seu quarto. Lá também estavam sua mãe, com os olhos circundados por olheiras profundas, junto de Mariana. Não se recordava de nada que havia se passado. Nem mesmo tinha ideia de quanto tempo havia dormido. Quando perceberam que ela estava acordada novamente, levantaram-se das cadeiras e vieram correndo em sua direção. Ela ainda estava meio confusa. Queria perguntar logo o que tinha acontecido com ela, mas não conseguiu. Uma dor aguda no fundo da boca se expandiu por toda a cabeça e quase desmaiou novamente. Voltou a si e lentamente a agonia tomou conta ao compreender que sua língua não existia mais. Agora havia apenas um resquício do músculo que fora brutalmente arrancado. Começou a chorar, assim como sua mãe e a prima inseparável.

quarta-feira, 24 de julho de 2013

CLASSY GIRLS

O lugar ainda não estava muito cheio. Melhor assim. Nos últimos tempos estava se tornando muito ranzinza. Lugares lotados demais lhe incomodavam um pouco. Incomodava bastante pra dizer a verdade. Todo aquele burburinho e pessoas se acotovelando já haviam sido o objetivo de toda festa. Não mais. Agora procurava um lugar mais calmo para conversar com os amigos e talvez conhecer alguém interessante. Mas dessa vez deu o braço a torcer foi naquele bar. Não era bem o que poderia se esperar de um bar. Em muito se assemelhava a uma pequena boate, principalmente pela música alta.

Pegaram uma cerveja e ficaram conversando sobre a rodada do futebol naquele final de semana. Esse assunto já havia lhe interessado antes, mas na atual condição do seu time preferia falar outras coisas. Correu o olhar pelas pessoas no bar. A padronização dos jovens lhe impressionava. As roupas eram as mesmas. Mas isso não era o pior. O que realmente lhe incomodava eram as ideias, os assuntos. Parecia que todo mundo pensava igual. Ou melhor, ninguém pensava nada. Era tão difícil se deparar com alguém interessante que desenvolvesse uma conversa menos superficial. Isso lhe cansava um pouco. Mas hoje estava disposto a deixar esse seu novo lado rabugento de lado. Queria se divertir e jogar conversa fora. Saíra de casa com a ideia de ser mais paciente e aproveitar aqueles momentos com os amigos.

Percebeu uma garota sozinha sentada em frente ao balcão. Fisicamente ela lhe atraiu. Era ruiva, com os cabelos muito lisos cortados rente ao pescoço. Usava um batom vermelho muito forte, que contrastava com a pele de um branco extremo. Trajava uma jaqueta de couro preta justa ao tronco e uma calça clara, que ele não pôde identificar bem a cor, pois a luz era meio difusa no ambiente. Ela conversava com um garçom e sorria vez ou outra. Tinha tudo para ser uma mulher interessante. As aparências podem enganar, mas era inegável o ar de determinação que ela transmitia. Mas poderia estar enganado. Acabou por suprimir o desejo de ir até lá e puxar qualquer assunto. Nunca fora tão desinibido assim. Raras vezes tinha iniciado uma conversa com alguma garota sem que houvesse um mínimo sinal da parte dela.

Os amigos continuaram conversando sobre assuntos diversos. Falaram sobre os filmes que haviam estreado naquele final de semana. "Este último do Johnny Depp é muito bom", disse um. "Mas os filmes dele são sempre muito bons", completou outro. Preferiu não entrar nessa conversa e expor a lista de razões pelas quais achava o ator em questão muito supervalorizado. Toda vez que isso acontecia ele acabava se deparando um incansáveis advogados do ator. E, não importava os argumentos de usasse, sempre saía da conversa como uma pessoa chata que não sabia reconhecer um bom talento. Continuou observando as pessoas ao redor, cada vez mais seu olhar se prendendo àquela garota. Ela continuava conversando com o garçom e rindo várias vezes. Além de tudo é bem humorada, pensou consigo.

Ela raramente olhava para quem estava ao redor. Parece que as pessoas aqui também não são interessantes para ela. Se ela for tudo que parece é melhor mesmo que eu não vá até ela puxar algum assunto. A paixão pode ser repentina. Agora nem sabia sobre o que os amigos conversavam. Aquela presença lhe dominava e não conseguia parar de olhá-la. Ela se virou calmamente, observando as pessoas à sua volta. Quando seus olhos encontraram os dela, um discreto sorriso foi lançado em sua direção. Não respondeu logo de cara. Provavelmente era outra pessoa que havia chegado. Talvez fosse o namorado. Com certeza uma garota dessas não está sozinha. Ela fixou o olhar nele e acenou. Agora tinha certeza. Era para ele que se dirigia. Esqueceu completamente dos amigos e deixou-os tagarelando sobre o que quer que estivessem falando.
 
- Uma cerveja, por favor - falou se dirigindo ao garçom.

- Essa desculpa pra começar algum assunto comigo não vai colar, sua cerveja ainda está cheia - disse ela com um sorriso aberto - Lígia - completou lhe estendendo a mão.
 
- Rodrigo. E preciso mesmo pegar outra cerveja, essa aqui já está quente.
 
- É, eu percebi mesmo que você só estava segurando a garrafa, mas não estava bebendo nada. Já deve estar terrivelmente quente mesmo.
 
- Então você estava me observando, suponho.
 
- Estava. Há um bom tempo. E você demorou um pouco para notar. Achei você diferente. Me passou a impressão de que não é do mesmo tipo que enche esse bar sempre. Não sei bem porque, mas me passou um impressão de ser mais interessante que a maioria. E gostei do seu estilo.
 
- Meu estilo? Olha, por essa eu não esperava.
 
- Gostei da sua camiseta. Darth Vader? Passa a ideia de uma pessoa bem humorada e que gosta de cinema. Será que acertei?
 
- Que gosto de cinema você acertou em cheio. Bem humorado, acho que você mesma vai precisar me falar mais no final da noite.
 
- Prometo ser sincera.
 
- Espero que seja.
 
- Eu sempre sou, mas isso não é necessariamente um ponto positivo. A minha resposta vai depender mais de como você vai se comportar - deu um sorriso e uma piscada singela.
 
- E você é da cidade mesmo? Nunca te vi nesse bar antes. E olha que eu costumo frequentar esse lugar com certa frequência. Pelo menos costumava.
 
- Não, na verdade sou de outra cidade, mas moro aqui há algum tempo. Há muito tempo, na verdade, mas estava viajando nos últimos dois anos e só voltei ontem.
 
- Viajando por onde? Se não for muita intromissão minha.
 
- Claro que não. Viajei pela Europa nesses tempos. Conheci vários países, mas fiquei quase nove meses na Áustria. Sou de lá. Minha família é de lá, na verdade.
 
- Interessante, tenho muita vontade de conhecer a Europa. Toda aquela cultura. Deve ser uma experiência fantástica.
 
- Isso é o que mais me atrai a viajar por aqueles países. Já conheci outros cantos da Terra, mas nada se compara ao velho continente europeu. A cultura, as artes, a história parece estar viva em cada rua, em cada prédio. Você deveria ir até lá.

A conversa continuou e os dois pareciam ter se esquecido completamente de tudo ao redor. Era como se já fossem velhos conhecidos. Quem diria que naquele dia Rodrigo encontraria alguém tão interessante. A atenção de ambos só foi tirada da conversa quando começou a tocar Doom and Gloom. Ele acabou cantarolando alguns versos entre um gole e outro na cerveja. Percebendo isso, ela não se conteve.
 
- Você gosta dos Stones?
 
- Na verdade sou simplesmente fascinado por eles.
 
- Mais uma coisa em comum então. Eu amo tudo que eles já fizeram.
 
- Eu tenho a discografia completa deles em meu computador. E várias músicas no celular também, é claro.
 
- Fico realmente impressionada como eles ainda conseguem fazer músicas nessa qualidade, depois de tanto tempo de carreira.
 
- Eu também. Essa música que está tocando é a prova disso. Depois de 50 anos eles ainda conseguem criar algo assim. Algo que seja bom e atual, mas que mantém a cara deles.
 
- Nossa, eu penso exatamente a mesma coisa. Mas, e a velha questão?
 
- Qual?
 
- Beatles ou Rolling Stones? Pense bem, porque essa resposta é muito importante para a minha avaliação a seu respeito, mocinho.
 
- Eu gosto das duas.
 
- Não vale. Tem que escolher uma.
 
- Ah, então eu fico com os Stones. Resposta correta?
 
- Não sei, depende dos motivos. Me convença.
 
- Bem, antes de tudo, volto a dizer que gosto das duas bandas. Mas eu acho que os Stones são mais versáteis. É muito diferente o que eles fazem em cada disco, mas mesmo assim eles mantém alguma coisa que é só deles. Mal a guitarra começa os primeiros acordes e eu sei que é uma música deles. Não sei explicar muito bem o que é, mas tem algo deles em todas as músicas. E então? Resposta certa?
 
- Corretíssima! Eu penso exatamente o mesmo.
 
- Bom então eu devo pegar meu prêmio agora, suponho.
 
- É, você merece. Respondeu corretamente e ainda complementou com bons argumentos - e deu-lhe um suave beijo no rosto.
 
- Esse prêmio foi muito pouco pelo esforço cerebral que tive agora - completou ele, segurando levemente a cabeça dela e levando seus lábios calmamente na direção dos dela.

- Calma lá, rapazinho - protestou quando já estavam quase se beijando, empurrando-lhe com um mão no peito - já devia ter percebido que não sou do mesmo tipo de garota que costuma frequentar esse bar. Não beijo nesses bares, querido. Entendo seu esforço em criar uma boa argumentação na resposta. Mas, para os meus padrões, o prêmio foi mais que adequado. Desculpe, mas eu sou assim. As pessoas que vêm a esses bares só procuram diversão e nada mais. Não se importam com os sentimentos dos outros, só querem curtir o momento. Mas eu não sou assim. E fujo desse tipo de pessoa.
 
-  Mas por que isso? Nunca dá uma chance para ninguém?
 
- Sim, dou muitas chances, como estou dando a você. Se você realmente se interessar, não vai ligar de conversar comigo sem que haja algo além disso. Quem sabe outro dia não rola alguma coisa a mais?
 
- Entendo. Mas não quer dizer que concordo.
 

Ambos riram e continuaram conversando durante muito tempo. Ela saiu um momento para ir ao banheiro e ele virou-se de frente para as pessoas no bar, mas permaneceu sentado com sua cerveja. Os amigos continuavam cercando cada garota que passava em torno deles. No fim das contas, mesmo que não conseguisse arrancar sequer um mísero beijo  dela, já teria valido à pena passar a noite toda apenas conversando. Ela voltou bem no momento em que começou a tocar Dream".

- Nossa, como eu amo essa música. É a minha favorita do Fleetwood Mac. Vamos dançar! - disse ela já puxando-lhe pela mão.

Abraçaram-se e dançaram lentamente. Ela apoiou a cabeça em seu peito e ele sentiu seu perfume. Havia algo angelical naquela garota. Apenas estar tão próximo a ela fazia com que ele experimentasse as melhores sensações que poderia imaginar. Ela lhe transmitia paz. Começou a cantarolar sem nada mais dizer - Thunder only happens when it's rainning. Ela virou-se para ele e completou - Lovers only love when they're playing - e sorriu no canto dos lábios. Ele não se conteve e, mesmo sem pensar, seu rosto moveu-se na direção do dela, que virou-se lentamente.
 

- Não se afobe, menino. Já lhe disse que sou outro tipo de garota. Tudo está perfeito, mas não passará disso. Não aqui. Não hoje.

Permaneceu ali. As mão envolvendo a cintura dela, os lábios encostados na sua cabeça. Estava tudo tão perfeito daquele jeito. Os pensamentos pareciam ter simplesmente desaparecido de sua mente. Nada mais importava. Ninguém mais havia ao redor. Eram apenas eles. Não tinha a mínima ideia de quanto tempo passaram assim. Voltou a si quando, ao redor, as pessoas dançavam de forma frenética. Se deu conta de que agora tocava Little Less Conversation.
 
- Acho que estamos no ritmo errado para se dançar Elvis - disse ao pé do ouvido dela.
- Nossa, nem percebi que música estava tocando. Estava tão bom que simplesmente me perdi em meus pensamentos.
 
- Por mim eu continuaria assim com você pelo resto da noite, mas tenho medo que acabemos tomando alguma cotovelada.

Voltaram ao bar e pediram mais uma cerveja. O tempo parecia não passar ao lado dela. Falaram mais sobre música, cinema, literatura. Até sobre política. Os amigos chegaram e o chamaram para ir embora, mas ele se recusou. Disse que ficaria mais e depois arranjaria um jeito de voltar para casa. As luzes do bar se acenderam e, só então, se deram conta da hora. Precisavam partir porque o estabelecimento já estava para fechar.

Ele a acompanhou até o seu carro. Ela só havia conseguido encontrar uma vaga no final de um beco lateral, bem em frente a um lago que ficava nos fundos do bar. O Sol logo iria dar as caras.
 
- Desculpe-me por hoje, você esperou até agora e nem foi embora com seus amigos. Mas esse é o meu jeito mesmo - disse ela encostada no carro, segurando-lhe pelas mãos.
 
- Não há nada do que se desculpar, foi a melhor noite da minha vida. Quando nos encontramos de novo?
 
- Não vamos. É por isso que me desculpo, pelo que ainda está por vir. Mas é minha natureza, não posso lutar contra. Infelizmente terei de roubar seu coração. Mas quero que saiba que gostei de você de verdade. Você é uma pessoa especial.

Ele tentou dizer algo, mas quando os lábios dela tocaram os seus qualquer pensamento simplesmente se esvaiu de sua mente. Nunca sentira algo tão forte. Era como se estivesse em um sonho, tudo calmo ao redor. A paz lhe tomou conta do corpo. Sentia uma infinidade de sensações de uma só vez. Era como se nada mais fizesse sentido. Não haviam mais problemas. Não haviam mais assuntos pendentes. Tudo poderia ser esquecido. A única coisa que importava era prolongar o quanto pudesse aquele momento.

Já passava das oito horas e o Sol começava a esquentar, quando Antônio entrou correndo no beco que dava acesso ao lago onde se exercitava toda manhã. Seguia perdido em seus pensamentos e na música que saía de seus fones. Mas algo fez com que voltasse à realidade. A cena que presenciou fez seu estômago revirar. Se aproximou para verificar melhor do que se tratava. Tudo era como um filme de terror.

Atrás de uma caçamba de entulhos, um corpo estava estendido. Era tão branco como uma folha de papel, como se sequer uma gota de sangue houvesse ali. Estava completamente enrugado, como nenhum velho poderia ser em vida. Era estranho que não houvesse sangue espalhado pelo local ou pelo corpo daquele senhor. Provavelmente a morte havia sido causada pelo imenso buraco que havia em seu peito. Chegou mais perto e não conteve a ânsia de vômito. Só viu um imenso buraco e um vazio onde outrora estivera seu coração. Mesmo ali não se podia identificar nada de sangue, apenas algumas gotas que haviam manchado a camiseta com a grande face de Darth Vader.

PS 1: O autor compactua com as opiniões de Rodrido sobre Johnny Depp e, principalmente, sobre Rolling Stones.

PS 2: O conto foi inspirado na música Classy Girls (The Lumineers)

Well, she was standing in a bar
I said: "hello how do you do?"
She handed me a beer with a kangaroo
She spoke of places I had never been
That she had travelled to
And we slow danced alone to faster tunes
I made her laugh, I made a pass
I showed her my half-dollar ring, she said:
"That's pretty cool
But classy girls don't kiss in bars, you fool."
So later on the crowd calmed down
And I believe it was as if
Something drew me closer to her lips
Picture my surprise when I had
Tried to lean in for a kiss
And she just smiled and turned her head down quick
I asked her why, and she replied
It was nothing I was doing wrong
It's just what it is
But classy girls, don't kiss in bars like this
No, classy girls don't kiss in bars
Boys will break their backs and hearts
But it's all right
The hardest part is through.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

À ESPREITA, versão 2

Para quem leu o conto À ESPREITA, essa é uma versão alternativa. Narra os mesmos acontecimentos, mas vistos com os olhos de outro personagem.

Já estava exausto e faminto. O dia todo havia percorrido aquelas terras e nenhuma investida havia sido certeira. Já era tarde e a escuridão tomava conta de tudo à sua volta. Era lua nova e em meio aos arbustos era praticamente impossível enxergar algo. O mais provável é que se deparasse com alguma serpente e o dia terminasse ainda pior. Mesmo com a barriga roncando, o cansaço falava mais alto e já se preparava para buscar algum abrigo e dormir.

Entrou em uma vegetação mais rala que parecia um bom lugar para passar a noite. Deu um passo e sentiu um graveto quebrar-se sob seu pé. Sobre a copa dos arbustos viu uma luz passar alta. Aquilo não era normal e, por instinto, abaixou-se rapidamente. A luz ainda rondava a vegetação à sua volta. A respiração se tornou mais compassada. Encolhido no chão sobre as folhas secas, o medo lhe tomou conta. Finalmente a luz cessou e ele pôde se levantar novamente. Olhou na direção de onde aquilo teria surgido. Avistou uma casa à beira de uma pequena estrada de terra.

Com medo do que pudesse haver naquela estranha construção recuou vagarosamente, tomando todo o cuidado para não quebrar mais nenhum graveto. Dessa vez poderia não conseguir se esconder tão bem daquela luz. Acabou se afundando mais na vegetação, mantendo uma distância segura da estrada.

Mas, mesmo com todo cuidado era impossível que não fizesse nenhum barulho. Olhou para o lado e percebeu a estranha luz. Agora se movia ao longo da estrada. O pavor apoderou-se dele de vez. Seus instintos se dividiam em permanecer parado ou sair em disparada. Mas optou por não fazer nenhuma das duas coisas. Manteve o passo cauteloso, seguindo ao lado daquela estranha luz.

De repente a vegetação arbustiva deu lugar a um denso dossel de capim alto. Seria bom para se manter escondido. Por outro, assim que penetrou no mato percebeu que seria simplesmente impossível não fazer nenhum ruído. Parou um instante. A luz virou-se em direção ao matagal, mas acabou indo para o outro lado. Permaneceu parado. Talvez fosse melhor esperar que ela seguisse em frente. Mas vindo da direção da luz ouviu um grito e o som de algo caindo no chão.

Seu coração disparou e suas pupilas dilataram. Queria correr, mas suas pernas permaneciam imóveis. Ali estava muito mais vulnerável a qualquer ataque. Viu o feixe luminoso voltado para o chão. Mas havia algo mais. Por detrás daquela claridade alguma coisa parecia se mover. Conseguia ouvir ruídos de algo percorrendo o chão. Parecia arranhar a terra. O frio lhe percorreu todo o corpo. A luz se moveu novamente, ainda próxima ao chão. A única coisa que conseguiu fazer foi se abaixar novamente.

Será que teria sido visto dessa vez? Esperou que a escuridão tomasse o ambiente novamente e continuou o caminho sorrateiramente. Ainda via a estrada sendo iluminada um pouco à sua frente. Agora tinha certeza. Havia realmente alguma criatura junto à luz. Ficou tão tomado de medo daquilo que não percebeu o barranco que se abria à sua frente. Desabou em um baque seco, caindo no fundo de um pequeno riacho. A primeira coisa que sentiu foi uma forte dor em uma costela. A água estava completamente gelada, o que só aumentava a dor que sentia.

Quase se afogou naquele riacho raso, mas o desespero era enorme. Quando enfim conseguiu erguer a cabeça, ouviu um som ritmado, logo acima da ponte ao seu lado. O desespero apoderou-se de vez. Se debateu na tentativa de se erguer o mais rápido possível. Acabou cortando o cotovelo em um pedregulho pontudo escondido no fundo do riacho pela escuridão. O som, parecido com um tambor ecoava em sua cabeça. Agora não adiantava mais ser discreto. O melhor a fazer era correr. Correr o máximo que pudesse. A princípio não conseguia ver muita coisa. Os olhos ardiam por causa do barro que havia entrado acidentalmente.

Por sorte, o outro lado do riacho era menos acidentado e não teve muita dificuldade em subir. Adentrou o mato cerrado desesperado. Não conseguia mais ver a luz, mas também não via muita coisa além de alguns metros. Mal conseguia manter os olhos abertos com todo aquele ardor. Começou a pendurar-se nos galhos dos arbustos, mas aquilo se tornou muito exaustivo. Se não estivesse tão cansado seria o melhor a fazer, mas seus ossos doíam demasiadamente por causa da queda. Com os olhos quase fechados percebeu que havia saído do mato e estava no meio da estrada. Agora era uma presa fácil. Teria que sair logo dali. Virou-se à esquerda e sentiu folhas secas quebrarem-se sob seus pés. A visão começou a clarear um pouco e viu bem a sua frente aquele vulto. Era a mesma criatura que estava na estrada. Ali, parada na varanda de uma casa. De nada adiantou correr tanto, pois acabara indo direto para sua destruição.

Derrapou nas folhas secas quando parou bruscamente. Enquanto ainda tentava retomar o equilíbrio, virou-se e correu máximo que pôde na direção contrária. Não ousava olhar para trás. O que poderia estar vindo atrás de si? A luz ou a coisa. Ou ambos. Acabou entrando em um local limpo, mas com várias árvores. Agarrou-se ao primeiro galho que reconheceu. Talvez aquilo não o visse lá no alto. Encostou as costas no tronco e deixou suas pernas penderem. Seu coração doía de tão rápido que batia. A respiração vagarosamente voltou ao normal. Permaneceu ali por alguns instantes até certificar-se de que não havia nada em volta. O frio começou a tomar conta de seu corpo. A água estava muito gelada. Saltou do galho e sentiu todo o corpo revirar de dor. Suspirou e seguiu em frente, de volta ao arvoredo. Olhando para trás, vez ou outra, para certificar-se de que nada o estava seguindo.

Dentro da casa a luz já tinha se apagado. Mas a criatura que caminhava na estrada junto com ela encontrava-se sentada ao chão, grudada na porta. Levantou-se calmamente, deu uma respirada funda e foi para o quarto. Sentou-se devagar na cama, puxou o cobertor e fechou os olhos. Em breve adormeceria.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

À ESPREITA

Ariane era uma adolescente que tinha o costume de ir à casa da avó todas as tardes e lá permanecia até o início da noite. Não gostava de se demorar demais porque tinha medo de voltar sozinha pra casa. Não que a distância fosse muita, mas o medo acabava lhe tomando conta nessas horas mais escuras. E entre todos os medos possíveis, o que realmente lhe tirava a paz eram extraterrestres.

Naquele dia acabou ficando um pouco mais. Despediu-se da avó e saiu. Mal colocou o pé fora da varanda já sentiu um calafrio lhe percorrer a espinha. Pare com isso, menina, pensou consigo mesma. Não há nada que temer e quanto mais você pensar nessas coisas, mais medo terá delas. Respirou fundo e seguiu em frente. Passou pelo pequeno portão e continuou na direção de casa. A distância não devia passar de 200 metros, mas naquela noite de lua nova parecia uma eternidade. Ascendeu a lanterna que sempre levava consigo para iluminar a estrada de terra. 

Mal dera os primeiros passos, ouviu um barulho nos arbustos do lado direito. Por instinto, virou a lanterna rapidamente naquela direção, mas não havia nada. Nem mesmo as plantas se moviam. Deve ser coisa da minha cabeça. A gente acaba imaginando ouvir e até vê coisas quando está com medo. De qualquer forma, prometeu a si mesma que da próxima vez não iria mais virar a lanterna. Sabe-se lá com o que posso me deparar. 

Apertou o passo, mas a sensação de olhos a lhe seguir permaneceu por todo o caminho. Tentava se convencer de que tudo não passava de pensamentos bobos. Mas a impressão que tinha era muito mais real. Quase podia sentir uma respiração em seu pescoço. Começou a pronunciar algumas orações em silêncio. Apertou a lanterna com força entre as mãos, que agora já haviam começado a suar. Estava toda arrepiada e com a respiração ofegante. 

Mais uma vez tentou se acalmar. Respirar daquele jeito era um indicativo de que estava com medo. Se for um animal, ele pode reconhecer isso e aproveitar para atacar. Mas que animal? Não existe nada aí. É só esse meu medo tolo, me pregando uma peça mais uma vez. Novamente ouviu um barulho nas plantas. Apertou ainda mais a lanterna. Manteve o passo apresado e os olhos fixos no caminho à sua frente. Vultos se moviam ao seu lado. Sabia que era sua visão periférica que lhe pregava outra peça. 

Estava quase na ponte próxima ao pequeno riacho. Não mais que 50m separavam Ariane de sua casa, onde finalmente estaria segura. O capim alto que rodeava o fio de água fez um barulho muito mais forte e evidente. Dessa fez ela sabia que não poderia ser um engano. Realmente havia algo ali. Virou a lanterna para lá e tudo parecia calmo. Olhava aquelas plantas, rezando para que nada visse. Provavelmente era algum pássaro que havia se assustado com ela. Estava retornando o foco da lanterna para a estrada quando viu, de relance, um vulto mais afastado em pé no meio do matagal. Soltou um grito e deixou a lanterna cair. 

Lágrimas quase escaparam dos olhos. As mãos tremiam e os músculos pareciam não conseguir reagir. Pensou em correr e deixar a lanterna pra trás, mas corria o risco de, no desespero, acabar caindo da ponte. Abaixou-se tateando o chão, mas mantendo os olhos no mato à sua frente. Sentir-se naquela posição tão frágil e desprevenida só a fez sentir ainda mais medo. Suas mãos só encontravam as pedras no meio da estrada. Virou a cabeça para o chão. 

Mesmo assim era difícil identificar o que poderia ser a lanterna. Era um objeto muito pequeno e não conseguia ver quase nada no breu em que estava. Finalmente conseguiu diferenciar o objeto dos pedregulhos. Mal havia colocado a lanterna em suas mãos, ouviu um novo barulho. Agora muito mais perto. Dessa vez as lágrimas vieram sem controle. Iluminou as plantas que lhe cercavam com as mãos totalmente trêmulas, mas dessa vez não viu nada. Levantou-se e andou o mais rápido que pôde. Os músculos de sua canela começaram a doer. Pensava em olhar para trás, para certificar-se de que não estava sendo seguida, mas tinha medo do que poderia encontrar. Alcançou a ponte. Abaixo, um estrondo na água fez com que Ariane começasse a correr. Já não importava se aquilo poderia atrair ainda mais o que a espreitava. Quando gotas d’água espirraram em suas pernas, não restavam mais dúvidas. Realmente havia algo ali. E parecia estar perseguindo-a. Tinha certeza de que nunca havia conseguido correr tanto quanto naquele momento. 

Embaixo da ponte aquilo se debatia, na tentativa de nadar. Com muito esforço, conseguiu sair da água e se esgueirou novamente pelo mato. Ariane olhou rapidamente para trás e, embora não visse o que era, conseguia ver o mato se mexendo rapidamente. Abriu o portão de casa e entrou desesperada pelo quintal cheio de folhas secas, caídas das árvores do pomar. Agora a criatura já deixara o capim alto, mas ela podia ver os galhos dos arbustos se balançando, mais perto de sua casa. Com as mãos ainda trêmulas, era difícil abrir a porta. A chave era a certa, mas parecia não querer encaixar na fechadura de forma alguma.  

O som que agora ouvia era de folhas sendo esmagadas. Estava bem à suas costas. No quintal. Finalmente a fechadura girou. Entrou rapidamente em casa. Trancou a porta e começou a chorar compulsivamente, com as costas encostadas na parede. Sentou-se ali no chão mesmo. Pensou em olhar por alguma fresta, mas o que veria? Preferiu se levantar e ir para sua cama. Deitada, não conseguia parar de pensar no que acontecera. Sabia que era real. Sons poderiam ser engano e vultos apenas uma confusão  causada pela escuridão. Mas o conjunto de eventos não deixava dúvidas. Achou melhor não pensar naquilo. Já havia passado. 

Do lado de fora, sentado no galho de uma laranjeira estava o causador de toda aquela confusão. As costas encostadas no tronco e as pernas penduradas. Água pingava de seus pés. Sentia muito frio, por ter caído no riacho àquela hora. As costelas doíam, provavelmente por ter batido em alguma pedraenquanto se debatia. A mão era única parte quente do corpo, devido ao sangue que escorria de seu cotovelo. Teve sorte de não ter quebrado nada ao cair do galho naqueles arbustos. Pulou da árvore e voltou para a mata. Estava cansado e machucado. Ia precisar de uma boa noite de sono para recuperar as forças. Mancava, mas no dia seguinte com certeza a dor seria muito maior.

Este conto foi sugestão de uma amiga, que deu como tema "uma menina que ia todas as noites na casa da avó e voltava para sua casa com medo de ETs".

segunda-feira, 15 de julho de 2013

PINTASSILGOS


Ainda estava escuro, não apenas por ser tão cedo, mas porque uma densa neblina cobria tudo ao redor. Alice terminou de encher o balde e esfregou as mãos na intenção de que os dedos voltassem a responder aos seus comandos. Era normal que o frio acometesse aquela região nessa época, mas especialmente esse ano parecia que o inverno vinha sendo bastante mais rigoroso. Pegou os pesados baldes e viu a fumaça sair de sua boca com a baforada que soltou no esforço de erguê-los. Seus pés já estavam encharcados com o orvalho que se acumulava na grama baixa em frente à sua casa, o que só tornava a sensação de frio ainda maior. 

Entrou empurrando a porta com os ombros, mas teve que deixar os baldes no chão para soltar o fio da blusa de lã que acabou se enroscando em um prego. Sua mãe estava às voltas com os preparativos para o almoço. Ainda teriam muitas coisas a preparar naquele dia. A previsão era de que o padre chegasse em torno das onze horas.

- Ela está melhor hoje, mamãe?

- Agora está calma. Fui há pouco olhar e parece que está dormindo tranquila, finalmente. Mas logo isso tudo vai se resolver, querida. Não se preocupe, antes do que imagina vocês estarão correndo juntas por aí e brincando novamente, como sempre fizeram.

- Parece que já faz tanto tempo que ela está assim. Mal consigo me lembrar daquele tempo alegre. Éramos muito mais felizes. Todos nós. 

- Não fique assim, Alice. Como lhe disse, o padre chegará em breve e todo esse tormento acabará, afinal.

- Espero que a senhora esteja certa. Não consigo entender porque isso foi acontecer logo conosco. Logo com ela.

- Dizem que as criaturas malígnas rondam aqueles que têm o coração mais puro, querida. São essas almas que eles desejam com mais ardor. E sua irmã sempre foi uma garotinha tão bondosa.

- Lembra-se como ela passava horas cuidando dos pássaros no jardim, mamãe? Nunca vi alguém que se importasse tanto com animais. Posso subir pra vê-la?

- Tudo bem, mas tome cuidado para não acordá-la. E não demore muito, ainda preciso da sua ajuda pra terminarmos de organizar tudo aqui. Logo seu pai chegará da cidade.

- Eu só quero olhar pra ela um pouco. Sinto muita saudade. Desde que as crises começaram a piorar ela parece nem me reconhecer - disse, com uma lágrima escorrendo de seus olhos. Tentou disfarçar da mãe, enquanto virava-se e subia as escadas.

Alice tomou um susto ao entrar no quarto da irmã. Esperava encontrá-la repousando, mas ela estava em pé, em frente à janela. Ao ouvir o som na porta, virou-se e sorriu calmamente para Alice, que permanecia imóvel na entrada.

- Irmã, parece que faz tanto tempo que não te vejo. Desde de que tudo isso começou a piorar. Sinto tanto sua falta.

- Emília! Achei que você estava dormindo. Eu vim só pra te ver, como faço sempre. Não tenho certeza se você tem consciência disso.

- Mesmo que eu não me lembre, nunca duvidaria que você sempre esteve ao meu lado. Nós nascemos juntas e seremos unidas pra sempre, eu sei disso. Venha, me dê um abraço. 

Alice caminhou até a irmã gêmea. O quarto era uma grande bagunça. Quando os ataques começavam ninguém conseguia controlar Emília. A força que ela adquiria era sobrehumana e costumava jogar objetos em qualquer um que estivesse junto dela. A única saída era trancar a porta. Mas isso não abafava os gritos, nem o som agoniante de suas unhas raspando tudo ao redor. Reparou nas marcas de unha nos móveis. Por onde olhasse havia algo jogado, objetos quebrados, roupas rasgadas.

- Assim que você melhorar vou te ajudar a arrumar tudo isso. Às vezes eu venho aqui e tento organizar um pouco as coisas enquanto você dorme.

- Eu sei. Mas quando essas coisas todas acontecem não sou eu que estou comandando, Alice. Se já te agredi, mesmo que com palavras, saiba que nunca fui eu - disse abraçando a irmã - Há quanto tempo não conversamos?

- Há muito tempo. Mas sempre canto aquela música pra você, lembra? Aquela que a vovó nos ensinou quando ficamos as férias todas na casa dela.

- Sim, claro que me lembro. Quando eu não estou no comando, tento me refugiar em algum lugar dentro de mim e cantarolo essa música. Ela me acalma, enquanto tudo ocorre aqui fora. E quando eu volto, não consigo me lembrar de nada que fiz. Tenho apenas as recordações da música. Bem, tenho outras recordações também, de tudo que vejo do outro lado, mas prefiro não falar sobre isso. Quero aproveitar esse momento com minha irmã.

- Você estava olhando lá fora. Deve estar com muita vontade de sair, eu imagino. Hoje não seria um dia muito agradável, está muito frio. Mas tenho certeza que logo estaremos as duas novamente correndo por aí, brincando e cantando.

- Tenho muita vontade de sair, realmente. Mas eu estava olhando aquele passarinho. Um pintassilgo, consegue ver? 

Alice olhou e viu o pequeno pássaro em um galho alto, próximo à janela. As penas amarelas e pretas formavam um belo contraste com a neblina que insistia em cobrir toda a paisagem. O pequeno pássaro voou até a janela e ficou lá, curioso e atento, olhando-as. Emília posicionou as mãos contra o vidro. Incrivelmente o animalzinho não saiu espantado. Isso sempre acontecia. Ela parecia exercer uma atração sobre os animais. Alice reparou nas mãos da irmã. Haviam inúmeras cicatrizes e cortes, em virtude dos ataques mais violentos. As unhas estavam quebradas e sujas. Talvez fosse sangue seco. Nos pulsos podia-se ver as marcas das cordas que tinham de ser usadas algumas vezes para prendê-la à cama. Nesse momento a mãe lhe gritou da cozinha.

- Bem, tenho que ir ajudar a mãe, Emília. Daqui a pouco o papai vai chegar com o padre e logo tudo isso será passado. Você estará muito melhor e vai poder brincar com os pássaros de novo, sem nenhuma janela entre vocês.

- Estou com medo, Alice.

- Medo de quê? As coisas serão melhores, você vai ver.

- É que às vezes sinto como se ele me nutrisse de alguma forma. Pode parecer besteira, mas me sinto muito mais fraca quando volto dos ataques. É como se eu fosse dependente dele agora.

- Isso é só porque ele é que está se nutrindo de você. Pode ter certeza que tudo voltará a ser como antes.

- É, você sempre foi a mais esperta de nós. E eu sempre pude confiar em você. Deve estar certa. Mas me dê um abraço antes de ir. Estou com uma sensação estranha hoje, algo que nunca senti desde que essas coisas começaram a acontecer. 

Após o longo abraço, Alice deixou o quarto e foi ajudar a mãe a terminar as coisas. Passaram toda a manhã arrumando a casa e preparando o almoço. Por volta das onze horas ouviram o barulho da carroça que vinha com o pai e o padre. Almoçaram em um silêncio cortante. Após uma meia hora os dois homens subiram. Alice permaneceu com a mãe, rezando com um terço em suas mãos. Nem a mãe conseguiu conter o choro quando os gritos da irmã começaram. Não era a irmã que se manifestava ali, isso era certo. Mas era o corpo dela que sofria as dores inflingidas por aquela entidade. Tudo durou menos de uma hora, que pareceram uma eternidade. O pai desceu com padre, mantendo a porta do quarto fechada.

- Agora é melhor deixar que ela descanse - disse o padre - esses rituais cansam muito a pessoa que está possuída. Mais tarde leve algo para ela comer, mas algo leve. Uma sopa bem rala seria o ideal. Ela ainda vai demorar alguns dias para se recuperar totalmente, mas em algumas semanas já estará andando por aí. Agora preciso ir, pois ainda tenho algumas coisas a resolver na igreja. Me chamem a qualquer hora, caso algo aconteça.

- Muito obrigado, padre. Sua bênção. 

Aquela tarde foi tranquila. A mãe levou uma sopa para Emília, mas como ela ainda estava dormindo achou melhor não acordá-la. As horas passaram arrastadas e silenciosas. A neblina da manhã havia dado lugar a uma chuva forte e insistente. As experiências que haviam vivenciado nos últimos tempos marcariam todos daquela família para sempre. Mas finalmente era tudo passado. Agora teriam que dar tempo para a recuperação física completa de Emília e poderiam seguir suas pacatas vidas como antes.

 Devia estar próximo das cinco horas da tarde quando Alice acabou adormecendo. Todo o peso de ter que suportar aquilo tudo ainda tão jovem tinha sido completamente desgastante. Teve um sonho calmo. Estava em um amplo campo com um forte Sol tingindo tudo ao redor com tons dourados. Não conseguia avistar nenhuma árvore. Nenhum animal. Não havia som algum. Nem mesmo os ruídos de seus pés sobre a vegetação baixa eram ouvidos. À sua frente, conseguiu reconhecer Emília sentada de costas pra ela bem à frente de um precipício. Andou calmamente e sentou-se ao lado da irmã. Mesmo sem dizer uma palavra sabia que ela sentira sua presença ali desde o começo. Ficaram caladas por alguns instantes, com as pernas penduradas sobre a escuridão sem fim do abismo.

- Sente essa calma toda, Alice?

- Sim. É o alívio de saber que tudo vai acabar bem. Por muito tempo temi que toda essa situação não passasse nunca. Mas agora sei que logo tudo irá se assentar e voltar ao normal.

- Não, Alice. Nada será como antes. Essas experiências sempre deixam marcas muito profundas.

- Mas com o tempo vamos nos acostumar. Um dando apoio ao outro e nossa família voltará a ser feliz.

- Você se lembra do que nós víamos quando éramos pequenas? Todas aquelas criaturas que viviam nos rondando assim que mudamos pra essa casa?

- Coisa de criança. É normal que imaginemos coisas e misturemos o mundo real com esse mundo fantástico. No final nem sabemos direito o que vimos e o que foi apenas invenção.

- Não, irmã. Nós simplesmente tentamos fingir que essas coisas não existem e com o tempo acabamos realmente acreditando nisso. Mas elas estão à nossa volta o tempo todo. Nos vigiando. Esperando o momento certo para nos pegar de surpresa. Foi isso que aconteceu comigo. Você sempre foi mais corajosa e não temia essas manifestações. Eu preferi fingir que não via nada, mas fui surpreendida sendo diretamente afetada por elas.

- Faz muito tempo que eu não vejo nada disso também. O que aconteceu com você foi apenas uma provação pela qual teve que passar. Pela qual todos nós tivemos que passar para testar a unidade de nossa família. Mas resistimos a tudo isso. Tenho certeza que seremos ainda mais unidos depois de tudo que aconteceu.

- Não se iluda, Alice. Eles nos querem fora daqui. Eles desejam a casa. Me usaram para que nós fôssemos embora e tentarão usar você também. Tome cuidado minha irmã, por favor. Eu não posso fazer mais nada, essa missão agora é sua. E não tape os olhos para isso, não finja que nada acontece. Não faça mais isso. Eu fiz por muito tempo e tive que pagar um preço muito caro. Não cometa o mesmo erro. 

Segurou firme a mão de Alice. Agora não havia mais marca alguma na irmã. A pele havia se curado totalmente. Como era bom poder tocar a irmã novamente e sentir que tudo estava bem. Emília se levantou e permaneceu em silêncio por alguns instantes. Depois, virou-se para a irmã e deu um sorriso.

- Adeus, Alice. Nunca se esqueça que eu te amo. Amo a todos vocês. 

Dito isso, deixou o corpo cair no abismo. Alice abriu os olhos de uma vez. Tudo calmo. Estava de novo em casa. Não sabia quanto tempo havia dormido, mas a noite em breve chegaria. Ainda chovia muito forte lá fora. Se levantou e caminhou vagarosamente até o quarto da irmã. 

Completo silêncio. Tudo estava muito calmo e tranquilo. Alice permaneceu parada na porta durante algum tempo. Foi então que notou que a janela do quarto estava aberta e todo o chão à sua frente se encontrava completamente molhado. Correu até lá e fechou-a rapidamente. Virou-se para a Emília, que permanecia deitada com os braços estendidos. Agora parecia finalmente descansar tranquila. Ajoelhou-se e pegou a mão da irmã. Fria como uma pedra. O desespero tomou-lhe os sentidos. Só agora tomara razão de que não havia nenhum sinal de respiração. Nenhuma reação. A irmã estava morta, talvez há bastante tempo. 

Permaneceu ali um pouco, com as lágrimas pingando no chão. Não havia mais o que ser feito, apenas avisar aos pais. Levantou-se e, ao virar-se para a porta se deparou com uma visão que nunca teria imaginado. No lado oposto do quarto haviam centenas de pintassilgos. Sobre o guarda-roupas, sobre a porta, no chão. Permaneciam ali, totalmente parados, sem fazer nenhum ruído ou movimento, olhando Alice fixamente nos olhos. Ela voltou-se para a janela. Não podia deixar aqueles animais lá. Levantou a madeira e viu, abaixo da frondosa árvore, um vulto. A princípio pensou que fosse seu pai, mas era mais alto. Com toda aquela chuva não conseguia distinguir muito bem o que era. O vulto permaneceu parado, encarando-a durante um bom tempo e começou a caminhar rumo ao horizonte, até desaparecer completamente em meio à torrente de água que havia se intensificado ainda mais. Alice abriu a janela  e virou-se. Não havia mais nenhum passarinho lá. No quarto, apenas ela e a irmã. Sentiu um frio cortante percorrer-lhe a espinha.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

O ADMIRADOR DE ARTE


Eduardo estava concentrado nos desenhos que havia passado o dia todo fazendo. Seus olhos estavam pesados e as mãos quase não respondiam mais ao seu comando, mas a ansiedade de ver tudo terminado era muito grande e simplesmente se esquecera da hora. Afundado em meio aos papeis e lápis, mal tivera se levantado para comer alguma coisa. 

Costumava passar as férias inteiras no sítio da avó desde criança, embora antes fosse mais divertido. Era um casarão antigo, em estilo colonial, afundado entre montanhas. Quando pequeno costumava morrer de medo de dormir no lugar. O teto velho que abrigava uma família de morcegos, o assoalho de madeira que fazia barulho a cada passo, o relógio de parede que tocava a cada hora, tudo lhe tirava o sono. Mas o pior era o silêncio à noite. Parecia que até as mariposas do lado de fora podiam ser ouvidas. Porém era justamente esse silêncio que buscava nesses dias. Agora, no final da adolescência, já não tinha mais a mesma graça de buscar brincadeiras. Por isso, levou todos seus materiais de desenho para passar o tempo lá. Ouviu a porta da sala de jantar se abrir e ao se virar deparou-se com o tio Pedro.

- Esses estão ficando realmente muito bons. Você devia seguir em alguma coisa relacionada a desenho, Edu - disse o tio folheando os outros desenhos sobre a mesa.

- É só um passatempo, tio. Acho que vou acabar fazendo vestibular pra algum curso de Exatas, mas ainda não sei.
 
- Mas é um passatempo que você desempenha muito bem então – completou o tio sorrindo – você poderia pensar nisso de outra forma. E esse que você está fazendo, o que é?
 
- Nada especial, apenas uma garota no meio da rua.
 
- Ela parece um pouco triste.
 
- É só por causa dessa rosa nas mãos. Talvez ser uma noite chuvosa também ajuda a passar essa ideia.
 
-E quem seria essa moça. Alguém em especial lhe inspirando? Será que próxima vez essa musa também virá pra cá com você?
 
- Ninguém demais. Eu sonhei com algo parecido com isso uma noite e resolvi desenhar. Só isso. Mas estou mais preocupado com o cenário ao fundo. Eu quero dar um tom mais real às casas em torno dessa garota.
 
- Está ficando realmente muito bom. Me mostre quanto tiver terminado. Vou me deitar agora. Boa noite.
 
- Boa noite, tio. Daqui a pouco eu vou também. 

Eduardo ficou desenhando mais um pouco, mas foi vencido pelo sono e decidiu se deitar. Apagou as luzes e fechou a janela da sala. Mesmo com o calor que estava fazendo era melhor garantir que não entrasse nenhum pássaro na casa. Entrou na porta da direita, pois seu tio estava dormindo no quarto ao lado. Já estava quase adormecendo quando viu a luz da sala se acender, pela fresta da porta do seu quarto. 

Ah, tio Pedro, já passou da época em que você me assustava com essas brincadeiras, pensou consigo. Vou ter que dizer pessoalmente ao senhor que isso não funciona mais comigo? Sentado na cama, abaixou-se sobre os joelhos e observou o tio parado na frente da janela olhando seus desenhos. Quando puxou o cobertor e começou a procurar o chinelo no chão com os pés, a luz se apagou. Talvez o tio estivesse apenas observando seus desenhos realmente. 

Deitou-se de novo e viu a luz se acender de novo. Novamente observou o tio parado ao lado da janela com seus desenhos nas mãos. Mais uma vez foi se levantar e a luz se apagou. Já entendi tio, a ideia é me assustar mesmo. Dessa vez você se superou na brincadeira, mas ainda não vai funcionar. Seria melhor ignorar a brincadeira e dormir. 

Na terceira vez que a luz se acendeu Eduardo não se moveu. Deixaria o tio continuar com aquela brincadeira até que se cansasse. Talvez o tio inventasse algo mais na tentativa de assustar o sobrinho. Só o fato de ter colocado um chapéu já valia o esforço. Mas essa fase de sentir medo passara há algum tempo. 

A luz permaneceu acesa. Os olhos começaram a pesar quando Eduardo ouviu o tio se mexendo na cama ao lado. Acho que desistiu, hein tio. Dessa vez Eduardo tinha vencido. Sorriu em silêncio pensando no desapontamento do tio em não ter conseguido dar um susto no sobrinho dessa vez. Mas acabou esquecendo a luz acesa, melhor eu apagar porque senão a vó pode ficar brava comigo amanhã

Se levantou e puxou a porta. A luz se apagou imediatamente, mas antes Eduardo ainda conseguiu ver o vulto na janela. Com tudo escuro não via mais nada. Aquilo era estranho, pois além dele e o tio só havia a avó na casa. Voltou ao quarto e deitou-se tentando raciocinar tudo aquilo. A luz se acendeu mais uma vez. A inquietação lhe tomou conta. O tio começou a se remexer no quarto ao lado. Eduardo percebeu que ele também estava inquieto com toda aquela situação. Pelo barulho do quarto, percebeu que dessa vez era o tio que se levantava. Quando ouviu a outra porta se abrir, a luz novamente se apagou.

Quando o tio se deitou mais uma vez e a luz insistentemente se acendeu, Eduardo tossiu para avisar ao tio que ele também não estava entendendo muito bem o que estava acontecendo. Ouviu o tio começar a falar sozinho, muito rápido. Demorou um pouco para entender que eram orações proferidas. Talvez o tio estivesse lendo a bíblia que havia em seu quarto. Durante mais uns cinco minutos a luz permaneceu acesa. O tio continuou rezando. Enfim, a luz se apagou definitivamente por aquela noite. 

Eduardo ainda demorou um pouco para dormir, estava realmente tenso com o ocorrido. Acabou pegando no sono e tendo sonhos muito agonizantes e perturbados. Seus desenhos tinham tomado vida e corriam atrás dele para reclamar dos pequenos defeitos e irregularidades que ele havia deixado. 

No outro dia, ele e o tio se entreolharam na mesa do café, mas não tocaram no assunto. Durante os outros dias que permaneceu na casa nada mais aconteceu. Também não voltou a desenhar. Achou melhor aproveitar os dias de Sol. Na véspera de partir de volta para casa foi guardar os desenhos que havia feito naquelas férias. Olhou-os por um momento. Havia sim alguns defeitos, mas estava melhorando. Esses ficaram realmente bons. Acho que meus desenhos nunca me perseguiriam para reclamar das suas imperfeições, afinal. Talvez devesse mesmo pensar em fazer algo relacionado a isso durante o resto da vida. 

Parou um instante a mais no último desenho que fizera. A garota com olhar perdido e triste segurava uma rosa nas mãos. Era noite e ela estava sozinha na rua. Chovia e ele reparou em como as gotas de chuva pareciam reais vistas contra a luz do poste. Esse ficou bom mesmo. Olhou como os detalhes dos casebres em torno da garota tinham ficado bons. As roupas penduradas nos varais. O gato preguiçosamente enrolado em uma varanda. Tudo tinha ficado bastante real. Só não se lembrava do momento em que havia colorido a rosa de vermelho. Nem quando havia decidido colocar ao fundo aquele vulto de capa e chapéu.