segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Crônicas Renegadas



Olá, pessoal! Hoje venho compartilhar com vocês um site onde vocês podem encontrar alguns textos meus. Pra que já conhece é o site do Renegados Cast. Se você ainda não conhece, corra para o conferir o site deles porque você está perdendo tempo. Tem muita coisa interessante por lá.

Bem, desde agosto os meus textos têm saído na coluna Crônicas Renegadas. Sugiro que aproveitem para conferir os diversos textos que eles vêm publicando, de autores variados. Tem muita coisa legal, muita coisa mesmo. Além dessa grande oportunidade para escritores disponibilizarem seus trabalhos, ainda existem diversas colunas interessantes sobre literatura, onde eles fazem resenhas dos últimos lançamentos.

O podcast deles é um tópico à parte. Muito divertido e hora ou outra abordam temas de literatura ou assuntos correlacionados. Você pode conferir também conversas com grandes escritores brasileiros, como Eduardo Spohr e Fábio Barreto. confiram lá!

Aproveito para agradecer aos organizadores do site pelo apoio durante todo esse tempo!

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Contos Sonoros - DIÁRIO DE UMA CURA


Você já conhece o projeto “Contos Sonoros”? Trata-se de um podcast voltado a narrar contos de escritores brasileiros, no site do Meia Lua pra Frente e Soco. Recomendo muito que confiram. Trata-se de um audio de contos, geralmente narrados pelo próprio autor. É possível ouvir diretamente no site ou fazer o download para ouvir depois e quando quiser. É uma grande oportunidade para autores disponibilizarem seus textos de uma forma alternativa, uma ótima iniciativa.

E hoje, no quarto episódio, tem um conto meu, o “Diário de uma Cura”, que já foi publicado aqui no blog. São cerca de 15 minutos de audio. Confira o audio
AQUI e o texto escrito AQUI .

Aproveito para agradecer aos organizadores do site, pelo convite e apoio!

domingo, 3 de novembro de 2013

QUANDO A VIDA LHE SORRI


- Senhor, já estamos fechando, gostaria de uma saideira antes? - disse o garçom sacudindo-o pelo ombro esquerdo. 

Abílio levantou a cabeça lentamente. Os outrora negros e vivos olhos eram agora duas esferas vermelhas circundadas por profundos sulcos escuros. Desde que tomou consciência do que vinha acontecendo, não conseguia pregar os olhos um instante sequer. Parece que a ignorância é um presente às vezes.

- Senhor? Gostaria de mais uma bebida? - insistiu o garçom, agora encarando-o fixo nos olhos.

- Ah, sim. Mais uma, é claro - aceitou ainda meio confuso. 

Correu os olhos vagarosamente pelo estabelecimento. Só algumas poucas pessoas ainda permaneciam no bar, muito bêbados para conseguirem voltar para casa sozinhos. Não era a imagem que ele guardava do bar, mas nunca tinha ficado até tão tarde naquele local, embora o visitasse com bastante frequência ao sair do trabalho. Estranhamente, naquele momento, lhe pareceu o ambiente perfeito para se estar. Era o que mais combinava com seu estado de espírito. Eram figuras estranhas aquelas que o rodeavam. Solitárias e amarguradas pelas mais diversas razões. Buscavam na bebida um refúgio momentâneo. Assim também era com ele naquele dia.

- Aqui está sua bebida, senhor - o garçom o trouxe de volta à realidade, deixando um copo com um líquido escuro à sua frente - e aqui está sua conta. Tenha uma boa noite - completou.

Pegou o copo na mão e o encarou durante algum tempo, se perdendo novamente em seus pensamentos. Viu seu reflexo contra o copo ainda cheio. Lembranças. Elas não paravam de lhe atormentar nos últimos tempos. Gritos, palmas, abraços apertados. Foi a primeira vez que foi até aquele bar. Chegou com os amigos ainda era dia. Logo alguns familiares e mais amigos se juntaram a ele. A alegria era muita. Quando começou os exames para a faculdade não acreditava muito que seria aprovado e, na verdade, não tinha muitas chances mesmo. Mas a vida lhe sorriu naquele dia. Estava eufórico, mas ainda não superava a alegria de seu pai. Uma pena que a irmã não pode comemorar com eles aquele momento tão feliz. Ainda não tinha completado 18 anos e, mesmo com o pai e a mãe juntos, ela foi impedida de entrar.

- Assim que completar a idade virei aqui e esfregarei minha identidade na cara desses seguranças - disse ao dar as costas à família e voltar para casa.

Não demorou muito. Na verdade, apenas duas semanas depois, agora maior de idade, Ariane voltou até lá. Resolveu que era o lugar ideal para comemorar essa nova fase da vida. Entrar naquele bar seria um marco da vida adulta. Abílio ficou pouco tempo e saiu tranquilo, deixando a irmã tomando um refrigerante com gelo e limão. Tanto esforço para nem beber, pensou consigo antes de deixar o recinto. Foi acordado pela mãe no meio da madrugada. Ao sair do bar, a irmã foi atropelada por um motorista bêbado enquanto ainda estava parada na calçada, bem em frente ao estabelecimento. Na pressa, se esqueceu de trocar as roupas e só se deu conta de que estava de pijamas quando amparava Ariane nos ombros. Nada muito grave, apenas alguns dias com a perna engessada e tudo estaria bem.

Uma cadeira arrastada no canto do bar o trouxe de volta. Os garçons já começavam a juntar tudo para fazer a limpeza. Era a hora. Virou a bebida de uma vez. Tomou a jaqueta de couro e se levantou. Caminhou como um zumbi por entre aquele amontoado de cadeiras e garrafas vazias. Empurrou a porta e saiu. Em breve o dia nasceria e começaria a esquentar um pouco. Mas até essa hora um vento cortante varria as ruas ainda desertas. Vestiu a pesada jaqueta e virou-se à direita, acendendo um cigarro, após um certo tempo lutando contra o vento.

Um cachorro seguiu andando na sua frente durante bastante tempo, entrando e saindo dos becos escuros pelos quais ia passando. Só mesmo uma pequena criatura daquelas para conseguir arrancar um leve sorriso de seu rosto naquele momento. Não que fosse um sorriso, mas era o mais próximo disse que ele conseguia exprimir. A região era perigosa, mas hoje parecia que todos os bandidos estavam de folga. Talvez fosse por causa da fina chuva que tinha caído a noite toda. Atravessou a estreita rua e caminhou pela calçada em frente à pequena pracinha de lâmpadas queimadas. Durante o dia era um amontoado de mendigos, velhos conversando ou jogando baralhos e pombas. Muitas pombas, geralmente alimentadas pelas duas primeiras classes de frequentadores. Agora estava silenciosa, provavelmente apenas os mendigos estavam por ali, mas encolhidos em algum canto seco.

As pernas pararam por conta própria em frente a um banco. As imagens pareciam se formar bem diante de seus olhos. Era um dia extremamente quente e o Sol queimava suas costas violentamente. Camiseta preta! Quem em sã consciência sairia de camiseta preta em dia como aquele? Mas ele saiu e agora sofria as consequências. Parou um momento em frente a um carrinho para tomar uma água de coco e repor os líquidos perdidos incessantemente durante aquele dia. Foi então que o celular vibrou. Era do escritório onde fazia estágio. O que seria agora? Será que havia esquecido de assinar algum documento? Tinha se certificado de que não faltara nada antes de sair.

- Pronto - atendeu ainda vasculhando sua cabeça, em busca de alguma falha.

- Olá, Abílio, aqui é Verônica. O Dr. Francisco acabou de voltar do almoço e gostaria de falar com você amanhã pela manhã. Eu gostaria de verificar se é possível.

- Tudo bem, estarei aí logo cedo. Mas...o que aconteceu? Esqueci de preencher algum documento ou de entregar algum relatório?

- Não, fique tranquilo. Eu não posso te adiantar muita coisa, até porque não sei bem ao certo o que é, mas o seu trabalho aqui nesses meses foi muito bem visto pela gerência. Eles querem te contratar, Abílio. Amanhã lhe farão uma proposta formal para que você continue conosco, assim que terminar a faculdade. Até amanhã então. O Dr. Francisco deve chegar por volta das nove horas. Não se atrase. E, parabéns.

- Obrigado, estarei aí na hora - foi o que conseguiu falar de forma automática. Estava incrédulo. Conseguir o estágio num dos escritórios mais respeitados da cidade já tinha sido uma conquista. Mas ser contratado poucos dias antes da cerimônia de formatura era algo impensável. Com as mãos trêmulas, discou para a mãe e deu as boas novas. A vida havia lhe sorrido mais uma vez.

Permaneceu parado alguns minutos. Era difícil saber ao certo quanto tempo havia se passado. O turbilhão de sensações era enorme. Ali, na frente daquele banco tinha recebido uma das melhores notícias de sua vida. Ali, na frente daquele mesmo banco, Eduardo foi assaltado uma semana depois. Era um grande amigo que havia feito na faculdade. Na verdade, era quase como um irmão. Voltava sozinho para casa uma noite, como já fizera inúmeras vezes. Foi abordado por dois garotos que pareciam drogados. Com prudência ele não reagiu e entregou tudo que foi pedido pelos garotos, mas de nada adiantou. Mal passou os tênis, um dos garotos lhe atirou na perna. No desespero, acabou se virando e correndo para o interior da praça. No caminho mais dois tiros o atingiram nas costas. Os garotos subiram correndo a rua, deixando o corpo estendido no chão. Abílio recebeu a notícia quando se preparava para começar o primeiro dia de trabalho. A alegria daquele dia acabou sendo abafada pela tristeza daquele acontecimento. Por sorte a ambulância chegou rápido e Eduardo sobreviveu, embora nunca mais fosse andar, já que uma das balas destruiu uma vértebra.

Um carro passou rápido por alguma rua próxima, cantando pneus ao fazer uma curva mais acentuada. Foi o suficiente para tirar Abílio do transe em que estava e trazer-lhe de volta a si. Involuntariamente, voltou a mover as pernas e seguiu para casa. Os olhos não enxergavam muito, pois a mente vagava por cantos escondidos de sua memória. A bota estava bastante suja de lama, já que não desviava mais das poças na calçada esburacada em frente à praça. Atravessou a rua, virou à direita e seguiu até a ampla avenida cheia de azaleias. Subiu algumas quadras e se deparou com o imponente prédio histórico que agora abrigava a galeria de artes. Desde pequeno sempre gostou muito de desenhar e pintar. Nada sério, apenas um passatempo nas horas vagas. Com a faculdade e depois o trabalho acabou deixando essa atividade de lado. Mas eis que um dia, assim sem aviso prévio, Vivian achou seus desenhos antigos, perdidos em uma pasta empoeirada no fundo de uma gaveta esquecida.

- Por que você nunca me disse que desenhava tão bem?

- Por dois motivos. Primeiro que eu não desenho assim tão bem quanto você está falando. Segundo, que eu mesmo acho que já tinha me esquecido disso. Faz muito tempo que não pego em lápis e papel. Muito tempo mesmo.

- Pois então você deveria voltar a essa atividade, querido - disse, lhe entregando a pasta com os desenhos e lhe dando um longo beijo. - Eu poderia posar para você qualquer dia desses, o que acha? Agora preciso ir. Não se esqueça de comprar as frutas que lhe pedi, preciso delas para fazer aquela sobremesa que sua mãe tanto gosta.

Abílio ficou parado com a pasta nas mãos durante um tempo. Ponderou e realmente tinha tempo suficiente para se dedicar àquela atividade que lhe dava tanto prazer. Acabou voltando a desenhar nos momentos vagos. O primeiro desenho foi de Vivian. Aquilo os excitava muito e paravam várias vezes, o que fez com que o desenho demorasse bem mais que o esperado para ficar pronto, mas nenhum dos dois se importou muito. Depois acabou postando algumas fotos em redes sociais e, indo contra sua natureza tímida, mostrou a alguns amigos. A reação era sempre de espanto e admiração. Não demorou muito para que começassem a lhe incentivar a submeter os trabalhos para a avaliação de algum especialista. Após relutar muito, acabou cedendo e, em menos de um mês, o diretor daquela galeria o convidava para expor seus desenhos. Ele estava organizando uma mostra de artistas novos e tinha se interessado muito pelo que Abílio tinha apresentado.

Ah, a vida. Ela lhe sorria mais uma vez. Agora não apenas na sua vida profissional, mas também quando fazia algo que era apenas para relaxar e dar vazão a suas emoções. Seria justo isso? Muitos artistas tentavam durante anos expor seu material e agora ele, apenas um mero advogado que rabiscava nas horas vagas, tinha conseguido. Não interessava também. Seus desenhos tinham sido escolhidos.

Que noite maravilhosa foi a abertura da exposição! E como Vivian estava deslumbrante. Ah, ele não conseguia tirar os olhos dela. Não tinha muito tempo que estavam juntos mas ele tinha certeza de ter encontrado a pessoa perfeita para passar o resto dos dias. Ele desfilou com ela por entre os desenhos de todos os artistas. A apresentou a tantas pessoas quanto pode. Era uma noite perfeita. Tudo estava caminhando dentro da conformidade, até todos serem surpreendidos pelos estrondos sucessivos de pneus cantando, metal se contorcendo e vidros se quebrando. A multidão logo se formou em frente ao prédio. Permaneciam perplexos com a visão do carro que derrubou um poste antes de bater em uma árvore.

Abílio logo reconheceu o carro. Era de Ernesto, o único amigo do trabalho que ainda não havia chegado. Os dedos não obedeceram quando tentou ligar para a ambulância. A imagem era desoladora. Só por um milagre o amigo conseguiria sair com vida. Abraçou Vivian com força e começou a chorar. Passou o resto da noite acordado no hospital, esperando por notícias. Ele havia sobrevivido, mas até quando suportaria ninguém poderia dizer com certeza. Foram longas semanas indo todos os dias ao hospital, até que o amigo finalmente descansou. Tentaram de tudo, mas os ferimentos foram muito profundos e ele acabou não resistindo.

- Sinto muito, querido - lá estava Vivian, com a mão em seu ombro assim que a notícia chegou.

- Eu tinha certeza que ele sairia dessa, Viv, eu tinha absoluta certeza.

- Tente se acalmar. Bem, sei que não é melhor hora, mas hoje é o último dia de sua exposição. Os desenhos precisam ser retirados amanhã. Se acaso você não se importar eu posso cuidar disso para você.

- Eu havia me esquecido completamente. Todos esses dias não tive cabeça para mais nada. Eu agradeceria imensamente se você pudesse cuidar de tudo. O que seria de mim sem você, hein? - completou encostando a cabeça no ombro de Vivian. - Me sinto um pouco culpado por isso. Se não fosse essa exposição ele não teria passado por aquele lugar e nada disso teria acontecido - completou com uma lágrima escorrendo preguiçosa sobre seu rosto.

- Não diga isso, foi pura coincidência, um golpe do destino. Apenas isso.

- Eu sei, mas às vezes me parece injusto eu estar tão feliz, enquanto pessoas ao meu redor estão sofrendo tanto. Só isso.

Pela primeira vez pensou na coincidência dos acontecimentos. Logo em um dia de festa por uma realização em sua vida, acontecia uma desgraça dessas. A princípio pensou no azar que tinha se abatido sobre ele, mas depois, com calma, começou a relacionar os fatos antigos. Não tinha a menor lógica o lhe ocorria naquele instante, mas toda vez que algo de bom acontecia com ele, alguém próximo sofria de alguma forma. E as conquistas mais difíceis pareciam vir acrescidas de calamidades maiores. Era como se, de alguma forma, a natureza se encarregasse de manter um equilíbrio ilógico. Ele estava exercendo um peso muito forte em um lado da balança e, para remediar, os outros acabavam sofrendo. Não apenas os outros. Ele também era diretamente atingido pelas aflições deles. Que besteira! Tudo era apenas uma sobreposição de acontecimentos aleatórios.

Finalmente chegou ao seu prédio. Em alguns minutos o dia amanheceria e Vivian retornaria da viagem. Entrou sem pressa e fechou o portão de forma mecânica. Os olhos estavam baixos. Todas aquelas lembranças o estavam destruindo. Subiu as escadas com a mão no bolso. Retirou um pequeno envelope e entregou ao porteiro.

- Bom dia, você poderia entregar ao meu pai amanhã, por favor?

- Bom dia, senhor Abílio. Entregarei sim, claro. O senhor parece um pouco cansado.

- Estou mesmo, mas logo vai passar. Já vou repousar. São só alguns pensamentos que têm me atormentado. Não se esqueça de entregar ao meu pai, por favor.

- Sim, senhor. Tenha um bom descanso.

Entrou no elevador e apertou o último andar. Aquele lugar lhe dava calafrios. Foi ali que, algumas horas antes, se deu conta que tudo era bem mais que coincidência. Estava voltando para casa na tarde anterior quando recebeu uma ligação. Era do gerente de uma companhia para a qual o escritório havia prestado um serviço há alguns meses. Eles queriam contratá-lo. As condições eram excelentes. O salário seria muito superior e ainda iria se mudar para outro país, onde o nível de vida era muito melhor. Sem contar que sempre foi o sonho de Vivian morar em outro país. Estava radiante e mal podia esperar para contar a ela a novidade. Mais uma vez a vida lhe sorriu, mas seus dentes se tornaram podres, o sorriso era vazio e a gargalhada era de deboche.

Ainda estava no elevador quando seu pai lhe telefonou e informou que a mãe estava com câncer. Tinha acabado de descobrir. Desligou o telefone sem outra reação. O que faria agora? Já era demais para continuar acreditando que era apenas o destino. Havia algo tentando colocar as coisas no eixo. Não fazia sentido, mas era o que ocorria. Sabe-se lá como, mas o equilíbrio sempre era refeito e quem sofria eram seus amigos e familiares. E se ele recusasse a proposta, mudaria algo? Não, já era uma conquista sua, independente da resposta que desse. Esmurrou a parede e encostou a testa na fria porta do elevador, enquanto dava vazão a seu pranto.

Estava imóvel em frente ao espelho, mas o barulho da porta se abrindo despertou-o. Deixou o elevador e pegou a escada de incêndio à sua frente, mas ao invés de descer, tomou o lado esquerdo e se dirigiu para o terraço do prédio. Ventava muito e o Sol começava a esboçar sua aparição no horizonte. Caminhou lentamente retirando um papel do bolso da jaqueta. O mesmo papel que desencadeou sua saída repentina de casa e todos os pensamentos que se sucederam.

Ainda estava muito chocado com a notícia da mãe quando abriu a porta de casa. Em alguns segundos a euforia da notícia do emprego novo se transformara em uma agonia profunda, não apenas pela doença da mãe em si, mas pela consciência de que havia algo errado com ele. Quantas pessoas ainda teriam que sofrer a cada vez que ele se desse bem na vida? Por que isso acontecia com ele? Por que? Não fazia sentido, mas vasculhou sua mente em busca de recordações de outros acontecimentos. Cada vez ficava mais claro para ele.

Por sorte Vivian ainda não estava em casa naquela hora. Não sabia como dar as últimas notícias a ela. Só queria ficar sozinho e pensar com calma em alguma explicação plausível. Mas era inútil. Chegar a uma solução, então, sem a menor chance. Empurrou a porta e encostou as costas na parede ao lado. Os pensamentos vagavam desorganizados. Caminhou lentamente até a cozinha. Sobre a mesa estava o envelope aberto com a folha e sobre eles repousava um bilhete com uma marca de batom no final. "Te amo cada vez mais. Amanhã comemoramos, quando eu voltar da viagem. V.". Tomou-o na mão e choque foi instantâneo. Era um exame de gravidez. Positivo. Apenas apanhou a jaqueta de couro e saiu novamente. Precisava tomar algo e pensar com calma. Sozinho.

O mesmo exame agora estava em suas mãos no alto do prédio. Ainda caminhava vagarosamente de um lado para o outro. Ao alcançar o parapeito, debruçou-se com os olhos marejados e observou a cidade. O Sol começava a se levantar e alguns raios já se esgueiravam entre os prédios e ruas mais distantes. Olhou mais uma vez o exame. Era a melhor notícia que já havia recebido na vida. Mas o que viria com ela? Quanto sofrimento aquilo acarretaria às pessoas que ele amava?

Colocou os pés sobre o parapeito e levantou-se. O vento bateu forte em seu rosto, secando as lágrimas que escorriam, enquanto outras se formavam em seus olhos. Só havia uma saída. Seria um sofrimento para todos receberem essa notícia, mas ele tinha explicado tudo na carta que seria entregue ao pai. Com o tempo o sofrimento daria lugar à saudade apenas. E seria melhor. Eles poderiam viver as vidas normalmente, sem que a desgraça os rondasse a cada nova conquista sua. Apertou forte o exame em suas mãos e deixou o corpo cair preguiçoso do prédio. Manteve os olhos fechados, tentando imaginar como seria o rosto do filho que estava a caminho. Eles nunca se conheceriam, é verdade. Mas ele teria a chance de ser feliz. Deixou escapar um sorriso tímido de seus lábios. Agora era ele quem sorria para a vida.

Este conto foi escrito em resposta ao 13° Desafio Literário da Skynerd, cujo tema era: Uma pessoa que descobre que cada vez que algo dá certo na sua vida, algo diferente acontece com as pessoas próximas...

terça-feira, 29 de outubro de 2013

OFÍCIO: ESCRITOR INDEPENDENTE


O podcast Meia Lua pra Frente e Soco já está há um longo tempo na lista de links que O Arieira recomenda, mas agora venho destacar o episódio 17. Nesse episódio, André Bacchi e Gleyson Stabile bateram um papo com a autora Liége Báccaro Toledo sobre o que é ser um escritor independente no Brasil. O papo foi muito divertido e descontraído e a autora deu várias dicas preciosas para quem está começando nesse ramo da escrita.

Confiram as satisfações, os percalços, o início, todo o drama para a publicação. No final, ainda tem um depoimento de mais onze autores independentes, que falam um pouco das suas experiências, das suas realizações e das suas frustrações. E, entre esses onze, está este autor iniciante que vos fala. Aproveito para agradecer o convite dos organizadores do Meia Lua pra Frente e Soco. Muito obrigado pela oportunidade de falar um pouco sobre as minhas percepções!

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

NOSSAS HISTÓRIAS DE TERROR


Hoje não vou publicar nenhuma nova história escrita por mim, mas sim um áudio que gravei com os amigos Marco Febrini, Raul e Jéssica Groke. Cada um contou algumas histórias de terror que conheciam. O áudio começou em um clima bem descontraído, mas com o passar do tempo (e o adentrar na noite) o suspense começou a tomar conta dos participantes.

Quem acompanha os meus textos vai ter uma ideia de onde vem uma parte da minha inspiração: a casa da minha avó. Espero que se divirtam ouvindo tanto quanto me diverti gravando. Créditos da edição para o Marco Febrini (aproveitem e dêem uma conferida na história sensacional que ele está escrevendo, a Nove Dragões).

Agora, confiram o áudio:



sábado, 14 de setembro de 2013

APENAS MAIS UMA SEXTA-FEIRA

A lua cheia começava surgir no céu quando saiu de casa, após um longo tempo se limpando. Olhou com cuidado para os dois lados da rua, para certificar-se de que não havia ninguém. Correu pela calçada, onde ainda se notava algumas poças d'água da última chuva, mas foi habilidoso em desviar de cada uma delas. Se manteve entre as sombras, para evitar olhares curiosos. Sabia muito bem se disfarçar. Isso era extremamente essencial em sua condição. As presas mal o notavam, até que já estivesse sobre elas. Era uma habilidade ajudava a manter seu estômago cheio. Mas não era apenas isso. Sua agilidade era impressionante, mesmo entre os seus iguais.

Atravessou rapidamente a pequena praça em frente à igreja matriz da cidadela. Se enfiou por entre os altos arbustos, mas logo percebeu que era uma péssima ideia. A vegetação estava encharcada e acabou se molhando também. Deu mais uma corrida, mas não se tocou de um arame preso a uma árvore no centro da praça. Sentiu as farpas lhe rasgarem a carne na altura dos ombros. A dor foi tão aguda e repentina que não conseguiu segurar o grito gutural de dor. Lambeu o ombro esquerdo, de onde gotículas de sangue de um vermelho intenso formavam um belo contraste com o negro sobre sua pele.

O gosto do sangue só aumentou sua fome. Era melhor se apressar, antes que a lua tomasse conta do céu e sua luz se espalhasse por todos os lugares. Como odiava a lua cheia. Tinha essa habilidade de enxergar muito bem na noite. A lua não fazia diferença para ele. Na verdade, esse maldito astro no céu só ajudava suas vítimas, que acabavam percebendo sua aproximação. Isso exigia que as perseguisse por um pouco mais de tempo, o que não o impedia de se saciar de sangue. Saltou sobre uma pequena moita de azaleias recém plantadas. Mal apoiou os pés do outro lado sentiu uma dor profunda na têmpora direita. Ainda atordoado sentiu o sangue lhe escorrer pela face. Aos seus pés, estava a pedra que fora arremessada. Saia daqui, criatura maldita, gritou uma menina do outro lado da rua. Filho do demônio que vem apenas para nos trazer desgraça, esbravejou uma velha gorda vestida de negro, atirando outra pedra que passou raspando por sua cabeça.

A única reação que teve foi disparar pela rua mais próxima, mas logo se deparou com mais pessoas que aproveitavam a brisa fresca daquela noite. Ao vê-lo, um garotinho começou a chorar, agarrado à saia da mãe que se mantinha imóvel com os olhos arregalados. O pai pegou um pedaço de pau que estava ao lado da calçada e correu atrás dele. Maldição dos infernos que nos assombra, gritou jogando o porrete, que passou zunindo sobre sua cabeça. Não tinha outra saída. Teve de correr para as escadarias da igreja. Correu o máximo que conseguiu, ouvindo os gritos e xingamentos atrás dele. Desgraça! Flagelo! Ainda mais em uma sexta-feira 13, berrava uma mulher logo que atingiu os degraus. Volte para as trevas de onde saiu. Agora não era possível identificar quem dizia cada insulto e também não importava muito. Todo tipo de coisas eram jogadas em sua direção, deixando um rastro de entulhos sobre os degraus que iam ficando para trás.

Quando chegou no alto da escadaria notou que tinha sido uma péssima escolha. Tentou empurrar a porta. Em vão. Estava trancada e ele não teria força suficiente para abri-la. Virou-se e viu vários olhos furiosos lhe encarando. Seguravam toda espécie de objetos para lhe atacar. Não seria uma boa ideia enfrentar aquela dúzia de pessoas enfurecidas. Mas não havia como correr. Mostrou os dentes e saltou sobre o homem que aparentava ser o mais velho do grupo. Lhe mordeu o pescoço, enquanto uma chuva de pedras e paus caíram sobre suas costas. A dor era lancinante. Largou a pele do velho e soltou um grito ensurdecedor quando uma paulada lhe atingiu a coluna, bem acima do quadril. As pessoas se entreolhavam, enquanto ele gemia e se contorcia. Um pequeno garoto bateu-lhe fortemente com um pedaço de pau na cabeça. Não sentiu mais nada. Apenas a escuridão profunda e o frio se espalhando por seu corpo. 

Abriu os olhos, sem ter noção de quanto tempo havia se passado. Estava deitado em uma cama macia, sobre lençois limpos e cheirosos. Do outro lado do cômodo uma garotinha brincava com suas bonecas de pano. Tentou se levantar sem chamar a atenção, mas a dor foi muito forte e gemeu muito alto. Com certeza algum osso havia se quebrado. A garota levantou-se e veio até ele, com alguns pedaços de carne crua. Deixou o prato e ficou olhando-o. Ele não poderia confiar em nenhum ser humano, mas a fome era muita. O sangue ainda fresco desceu por sua garganta. Como aquilo era bom. Era como se estivesse tomando ingerindo algum elixir da vida. Podia sentir suas energias se renovando a cada mordida. A garota se sentou na cama e passou lentamente sobre sua cabeça. Pobre gatinho! Só porque é negro esse povo ignorante o trata com tamanha covardia. Mas não se preocupe, eu cuidarei de você até que se sinta melhor. Aqui ninguém irá te maltratar novamente. Parece que você só traz má sorte para você mesmo, hein!

Este conto foi escrito em resposta ao Desafio Literário Relâmpago da Skynerd, cujo tema proposto foi: "Maldições de uma sexta-feira 13"

domingo, 1 de setembro de 2013

DIÁRIO DE UMA CURA





Mesmo após tanto tempo, ainda me recordo de cada detalhe, como se tivesse acontecido há poucas horas. Até aquele momento, ninguém sabia como tinha começado. Especulava-se que era algum vírus. Nada de novo, era a primeira suspeita sempre que uma doença surgia e se espalhava tão rápido. O burburinho era que, por uma zombaria do destino, o tal vírus tinha se adaptado e saltado de algum macaco para o homem. Pensando com calma, agora, os macacos também eram a primeira opção a se culpar. Sempre. Mas o fato é que nenhuma viva alma tinha alguma certeza. Nada de concreto. Ainda se imaginava que a origem seria os arredores de Nova Deli, onde surgiram os primeiros casos. Como fomos inocentes. A resposta esteve diante dos nossos olhos o tempo todo. Mas procuramos nos lugares errados. Perdemos muito tempo hábil. As respostas certas costumam ser as mais simples, mas, raramente, nos damos conta disso.
Eu havia chegado ao hospital muito cedo, sem tempo nem para a rotineira xícara de café. Fui logo em busca dos últimos casos. Era a minha rotina nas últimas semanas. O pouco tempo que me sobrava tinha uma única finalidade: dormir. Nunca era o suficiente e, a cada dia, havia menos horas disponíveis para esse fim. Quatro horas já pareciam uma eternidade. Alguns dias, nem isso me sobrava. Fazia apenas pouco mais de duas semanas que a enfermidade tinha sido confirmada no país, mas o pânico já era generalizado. Fanáticos falavam em apocalipse, em castigo divino e todo tipo de sandice que se possa imaginar. As igrejas nunca estiveram tão cheias. Por sorte, as autoridades mantinham os verdadeiros fatos encobertos. Se viesse a público o que realmente se passava com os pacientes, de acordo com o avançar da doença, ninguém poderia controlar a histeria. Os sintomas eram chocantes, até para colegas experientes. Só que eu não podia me dar a esse luxo. Era o cirurgião responsável do hospital, mas, com a gravidade da situação, todos foram destacados para a ala de infectologia. E, diga-se de passagem, a cada dia os doentes se amontoavam em maior número, na esperança de uma cura que nós simplesmente desconhecíamos por completo. Ofereciam pequenas fortunas, em vão. A doença era, ao menos, justa. Qualquer um poderia se infectar e o caminho era um só: a morte. 
A primeira paciente que vi naquele dia foi Helena. Devia ter pouco mais de 30 anos. 35 no máximo. Quando entrou no hospital, quatro ou cinco dias antes, era uma bela moça com longos cabelos loiros e olhos azuis muito vivos. Foi impossível não me lembrar de Olívia. Pensando agora, percebo que ela teve mais sorte que nós. A morte sempre nos parece algo terrível. O fim. Para Olívia, contudo, foi uma chance de não presenciar o turbilhão para o qual fomos arrastados. Agora penso assim. Mas tudo ainda era muito recente e doloroso para mim, e eu não poderia pensar dessa forma naqueles dias. Olívia e eu sempre fomos muito próximos. Mamãe costumava brincar que o maior tempo em que nos viu longe foram aqueles cinco minutos que nos separaram no nascimento. Ela não só nasceu antes, sempre foi mais adiantada que eu em tudo. Mais madura, mais animada, mais feliz. A ferida de sua perda ainda latejava e ardia em mim. Mal conseguia me concentrar no trabalho logo nos primeiros dias. E, então, veio a epidemia, sorrateira e avassaladora, sugando o que me restava de energia.
Helena chegou reclamando de muita febre e dor de cabeça, mas não perdera o bom humor. A febre se tornou uma rotina, e as convulsões se intensificavam a cada dia. Há dois dias, três no máximo, haviam começado os sangramentos. Por todo o corpo, mas, principalmente, pelos olhos, ouvidos e nariz. Agora, eu mal a reconheceria, não fosse o prontuário aos pés de sua cama. Os belos olhos azuis estavam tão profundos que seria difícil percebê-los como olhos. A pele já tinha se tornado enrugada e seca. Quase nada dos belos cabelos de outrora restava sobre seu crânio, apenas uma penugem muito rala podia ser notada. 
Ela estava muito calma quando entrei. Era incomum que os pacientes se mantivessem tranquilos, nesse estágio tão avançado. Parecia mais que alguma entidade sobrenatural lhes tomava conta do corpo. Abaixei-me vagarosamente sobre seu rosto, com uma pequena lanterna na mão, para verificar seus reflexos. Assim que a luz encontrou o globo ocular, ela soltou um grito horrível. Talvez não possa dizer que foi um grito realmente. Era mais como o ruído de um porco no momento da morte. Dei um salto, enquanto ela cravava as unhas no próprio olho, totalmente atormentada. Parecia que o simples contato com a luz lhe causara um transtorno desolador. Naquele momento de desespero, ela começou a arranhar o rosto. Gritei por ajuda, mas ninguém apareceu. Todos ocupados, com certeza. Havia muito mais pacientes que enfermeiros e médicos. A situação era caótica e a tendência era que só piorasse, cada vez mais. 
Usei toda minha força para contê-la e acabei levando alguns arranhões no braço. Qualquer um teria se desesperado com aquilo. Vi vários companheiros se ferirem dessa forma e acabarem tendo o mesmo fim dos outros pacientes. Era o mesmo que uma sentença de morte, já que nenhum infectado havia se curado até então. Mas eu não me importava mais, já estava condenado e só me restava esperar o momento derradeiro. O segundo paciente que chegou ao hospital havia me arranhado e mordido logo que a doença começou a se espalhar, uns dez dias antes. Ainda nem tínhamos noção se era aquela epidemia que havia se espalhado pela Europa em poucas semanas. Assim que a enfermidade foi confirmada, desesperei-me, mas não comentei com ninguém e continuei trabalhando normalmente. Não fazia sentido para mim, mas até aquele momento nenhum sintoma havia se manifestado. Talvez meu sistema imunológico fosse um pouco mais resistente, talvez meu organismo apenas fosse zombeteiro e estivesse prolongando minhas expectavas. Por sorte, as marcas dos arranhões que eu carregava logo abaixo do nariz não levantaram suspeitas. Mas logo eu começaria a manifestar os primeiros sintomas. A partir desse ponto, seriam apenas alguns dias até o encontro com as mãos frias da morte, era inevitável. 
Fiquei um tempo olhando Helena, que parecia tranquila agora. Na verdade ela não se mexia, não apresentava mais nenhuma reação. Eu já sabia o que havia acontecido, mas tentava enganar a mim mesmo. Não me dei conta de quantos minutos se passaram, até que uma enfermeira entrou, olhou-a e chamou pelos outros. Agora ela era apenas mais um caso. Mais uma morte causada por aquela doença maldita. Eu tinha visto inúmeras vítimas nos últimos dias, porém, aquela morte me tocou de uma forma diferente. Uma jovem no auge da vida. Tantos sonhos a serem completados. Tudo se encerrava ali. Naquela cama de hospital. As lembranças de Olívia voltaram como os ventos de uma tempestade no verão. Senti uma lágrima fria escorrer pelo meu rosto. Passei a mão rapidamente e deixei o quarto, antes que alguém testemunhasse aquele momento de fraqueza. 
O corredor era uma loucura total. Velhos, crianças, homens, mulheres, ninguém estava a salvo daquela maldição. Caminhei entre eles, sem voltar sequer um olhar para aquelas faces abatidas. Meus pensamentos estavam longe, enquanto eu vagava pelo hospital. Voltei à realidade quando me lembrei de trocar os curativos das costelas. Havia sido atropelado há poucos dias. Nada grave, além de um grande susto. Há quantos dias eu não tirava a gaze? Não conseguia me recordar. Com toda aquela loucura, era difícil pensar em algo tão fútil quanto meu pequeno corte. Mas agora era uma desculpa perfeita para me refugiar de toda aquela torrente de sensações que tomava conta de mim. 
Peguei os materiais em uma sala e saí rápido. Não queria que algum colega se oferecesse para me ajudar e se desse conta do estado em que me encontrava. Com toda a certeza, eu seria julgado por estar tão abatido com a morte de uma paciente, enquanto dezenas continuavam chegando ao hospital. Entrei em uma cabine no final do banheiro. Fechei a porta e comecei a tirar os esparadrapos. Meu rosto se contorceu antecipando a dor aguda que viria. Nas primeiras vezes que havia trocado os curativos quase desmaiei. Cheguei a pensar que os exames de raios X estavam errados e havia alguma fratura escondida. Mas agora não notava sequer uma leve pontada. Enfim, estava cicatrizando. Terminei de tirar as gazes velhas e não havia nenhum sinal do ferimento. Não havia nada, nem uma mísera cicatriz. Corri para o espelho e demorei alguns segundos para me dar conta de que os arranhões não estavam mais no meu rosto. Fui tomado pela confusão. Lembrei que as dores haviam diminuído logo após minha infecção. Uma esperança. Havia uma esperança. E era eu. Como fui tolo em não notar isso desde o início. Era difícil entender porque em mim a doença se manifestava de forma tão diferente. Mas não importava. Eu era a resposta. Eu era a cura. 
Saí correndo do banheiro e passei rapidamente, ainda sem muita ideia de como proceder. Eu estava em transe. Era muita alegria. Virei no primeiro corredor e entrei em uma pequena sala, onde juntei algumas seringas e agulhas. A maior urgência era tentar entender como aquilo funcionava. Desci as escadas, rumo ao necrotério. Precisava de algum corpo para iniciar os testes. A resposta devia estar no meu sangue. Precisava estar. Eu sabia que, provavelmente, nenhuma resposta viria assim tão fácil, mas não importava. A euforia parecia mover minhas pernas, mais que o raciocínio. Abri a porta e me senti aliviado por não ter ninguém. Caminhei calmamente, tentando organizar os pensamentos. Tudo bem, eu iria tirar o sangue de alguma vítima. E depois? Pouco importava, o êxtase havia tomado conta de mim. Era a possibilidade de cura, afinal. 
Aproximei-me de um corpo que ainda estava sobre a maca. Com certeza, tinha falecido há pouco tempo e, por isso, ainda não estava nas câmaras frias. No pé direito havia apenas um pedaço de papel preso por um barbante. 57 era o número. Quem era 57? Do outro lado constava o nome, mas agora não importava mais. Era apenas mais um. Em breve o mesmo aconteceria com Helena. Talvez, ela fosse o 58, talvez, o 59. Quem se lembraria? Seus sonhos, anseios e caminhos a percorrer se transformariam em um número qualquer que não faria diferença. Talvez eu fosse a única chance para todas aquelas pessoas. Talvez eu fosse a única chance para a humanidade, como alguns julgavam. Eu precisava andar logo. Cada minuto que eu perdesse poderia se converter em vítimas. 
Puxei o lençol que cobria o frio corpo estendido. Era um homem, mas dizer qual a idade era quase impossível. A forma como o corpo estava destruído não permitia que alguém o reconhecesse. Até eu poderia ter cuidado dele em algum momento. Mas os arranhões eram muitos. Uma das orelhas tinha sido arrancada, provavelmente por ele mesmo. As costelas estavam enfaixadas, lhe dando um aspecto de múmia. Na coxa esquerda, havia uma imensa cicatriz. Era fruto de uma cirurgia feita há muito tempo. Quando ainda era criança. Ele havia caído da bicicleta, ao tentar desviar de uma caçamba de lixo. No início, disseram a seus pais que talvez ele nem voltasse a andar, tamanho tinha sido o estrago em seu fêmur. Mas ele se comportou bem, e a recuperação foi perfeita. Só então me perguntei como eu sabia tanto daquela pessoa. Puxei a etiqueta e lá estava seu nome. Ivan Moreira. A etiqueta caiu de minha mão. Eu estava totalmente perplexo. 
Uma enfermeira entrou na sala, xingando por causa da porta aberta. Passou por mim sem nada dizer, apenas esbravejando ao ver o cadáver descoberto. Eu continuava na mesma posição. Não conseguia me ater às palavras que ela proferia. Ainda não faziam sentido para mim. Ela abaixou-se bem na minha frente, pegou a etiqueta e prendeu-a ao pé daquele corpo, soltando mais alguns palavrões. Cobriu-o e pegou um monte de papéis que estava sobre a mesa ao lado. Ouvi um barulho à porta e vi Helena entrando. Seus belos cabelos estavam intactos, assim como o profundo azul de seus olhos. Não havia nenhuma marca em seu rosto. 
A enfermeira passou rápido por ela e fechou a porta, com um forte puxão. Helena sorriu pra mim e veio em minha direção. Abraçou-me forte e apoiou a cabeça em meu peito. 
- Muito obrigada, doutor. Nunca me esquecerei do senhor e de tudo que fez por mim. Agora estou curada e posso voltar à minha rotina. Tenho tantas coisas a realizar ainda. E deverei cada uma delas ao senhor e à sua dedicação. Tenha certeza, quando eu tiver um filho, ele terá o seu nome: Ivan. 
 Eu não disse nada. Apenas permaneci abraçado a ela. Uma hora ela também compreenderia. Sozinha. Uma lágrima escorreu pela minha face. Ouvi um ruído na porte e levantei minha cabeça, ainda abraçado a Helena. Lá estava Olívia. Ela sorriu para mim, como só ela sabia fazer. Foi assim que descobri que eu não era a cura. Não havia cura. Só havia a morte. Mas a morte não era tão feia e escura como eu temia. Era um descanso, quase um alívio.
Este conto foi escrito em resposta ao 12° Desafio Literário da Skynerd, cujo tema proposto foi: "Uma estranha anomalia deforma alguns, mata outros, mas tem consequências diferentes em você, como..."

segunda-feira, 29 de julho de 2013

FAVOR MANTER O SILÊNCIO

Mariana e Mônica eram primas, mas de tão unidas, pareciam mais irmãs. A diferença de idade entre elas era de pouco mais de um ano. Sempre foram muito próximas. Desde a infância dividiam todos os segredos. Agora então, no auge da adolescência, não se desgrudavam nunca. Talvez porque, por hora, os segredos eram mais constantes e os assuntos mais urgentes. Assim como é tudo nessa fase da vida.

Mais uma tarde estavam sentadas sobre a cama conversando. As altas gargalhadas inundavam toda a casa. Sorte delas que naquele dia a mãe de Mônica havia saído cedo e não retornara até então. Primeiro que poderiam conversar à vontade sobre qualquer assunto sem serem interrompidas. Ou pior, sem correr o risco de que alguém acabasse por se inteirar do assunto. Mas não era só por isso. A mãe de Mônica tinha o hábito de assistir novela até quase o anoitecer. Sempre que as garotas exageravam no tom da voz ou dos risos, uma bronca ecoava pela casa toda.

Quando eram crianças, a senhora tinha a mania de botar-lhes medo, dizendo que haviam espíritos na casa e que se continuassem com a algazarra iriam incomodá-los. E, quando essas entidades eram perturbadas, faziam de tudo para que a paz voltasse ao local. Geralmente isso era o bastante para que as garotas não apenas diminuíssem o volume da voz, como para que se agarrassem à saia da senhora e, seja lá o que estivessem tratando, tinha um fim repentino. Mas agora, mais crescidas, essas baboseiras não tinham mais importância.

Já devia ter umas duas horas que elas estavam ali, sentadas sobre a cama com os travesseiros no colo. Vez ou outra uma garota esticava a perna que havia ficado dormente pela falta de circulação, mas nunca davam uma pequena pausa sequer na conversa. O alvoroço causado pelas confissões de ambas ecoava por toda a casa naquele dia. Talvez até da rua fosse possível ouvir suas risadas um tanto quanto insanas até. Em meio a um assunto e outro pararam quando pareceram ter ouvido batidas na porta. Se entreolharam, mas voltaram a conversar sem dar muita consideração àquilo. Logo os gritos inundavam todo o ambiente mais uma vez e novamente ouviram algo bater na porta, mas dessa vez com mais veemência.

Mônica se levantou para ver o que era. Do lado de fora não havia nada. Permaneceu alguns minutos na posição em que estava. Um pé para o lado de fora do quarto, escorada na imensa porta de madeira. Apertou os olhos, mas não observou nada. Encostou a porta mais uma vez e sentou-se na cama. Mal as meninas retomaram os mexericos, a porta vibrou fortemente. Dessa vez foi apenas uma única batida, mas com uma potência incrível.

- Estou ficando com medo, Mônica.

- Deixe de besteira, Mari. A mãe deve ter deixado alguma janela aberta e o vento está fazendo esta porta maldita bater sem parar. Você sabe como venta nessa época do ano por aqui.

- Sim, mas não ouço nenhum som de vento lá fora. E além disso...bem, só essa porta bateu. Estou achando isso muito estranho.

- Ah meu Deus! Vai ficar com medo de assombração agora?

- Não é medo. É uma questão de respeito. Não acredito que essas coisas existam, mas prefiro não tirar a prova.

- Pra mim isso é tudo desculpa de quem está se remoendo por dentro. Se quiser ir pra casa eu te acompanho, caso tenha tanto pavor assim de andar por aí a essa hora da tarde - disse Mônica com um sorriso no canto dos lábios.

- Vamos lá dentro fechar essa maldita janela então. Além do que, não dá para conversar direito com essa bateção de portas a todo momento.

As duas percorreram todos os aposentos, mas nenhuma janela estava aberta e sequer uma corrente de ar foi encontrada. Mariana ficava cada vez mais tensa com aquela situação. Entretanto, não deixaria transparecer isso para a prima. Era bem capaz que aquilo tudo fosse alguma traquinagem de Mônica para assustá-la. Diversas vezes havia caído nas peças da prima, que adorava causar esse pavor nela. Mas dessa vez não iria ceder tão fácil.

Voltaram ao quarto e conversaram sobre o último baile. Enquanto falavam dos garotos mantiveram o tom contido, mas assim que o assunto migrou para os vestidos das outras garotas, a entonação se alterou totalmente. Agora as meninas berravam. Chegaram a ficar sem ar com os comentários maldosos que teceram. Só cessaram o som com mais uma terrível batida na porta. Porém desse vez, Mônica se levantou rapidamente para ver o que era. Do lado de fora, mais uma vez, não havia nada. Apertou bem os olhos, mas continuou sem nenhum resultado. Encostou a porta mais uma vez. Mal as meninas retomaram as fofocas, a porta vibrou fortemente. Dessa vez a batida veio seguida de um "psiu" enérgico.

As garotas se entreolharam durante algum tempo, com a respiração esparsa e um arrepio no corpo. Mas Mônica era muito orgulhosa para confessar o medo que também lhe tomara conta naquele instante. Levantou-se mais uma vez e seguiu na direção da porta, com a cara fechada e uma determinação inabalável. Abriu a porta com tudo e ficou alguns instantes parada naquela posição. Colocou a mão na cintura e deu uma fungada.

- Quem está fazendo essa brincadeira?

Não houve nenhuma resposta. Tudo permaneceu calmo e tranquilo no resto da casa.

- Vamos! Responda! Quem pensa que vai nos fazer medo a essa hora da tarde? Já estou perdendo a paciência!

- Mônica, pare com isso. Volte aqui e vamos controlar o tom de nossa voz durante a conversa.

-Está com medinho, Mari? É claro que isso é meu irmão que já chegou em casa e está brincando com a gente.

- Então deixe ele pra lá e feche essa porta logo. Não estou gostando nada disso.

Mônica fechou a porta e entrou batendo o pé fortemente no chão de madeira. O estardalhaço causado por aquilo era incrível. Nem bem havia se aproximado da cama um estrondo inundou o quarto. O som foi terrível e as garotas levaram um certo tempo até compreender o que havia se sucedido. Bem no meio do quarto havia uma pedra enrolada em papel.

- De onde veio isso? - perguntou Mariana já apavorada.

- Não vi - completou Mônica, ainda meio sem compreender como aquilo havia ido parar ali.

- Mônica, este cômodo está completamente fechado. Não teria como uma pedra desse tamanho ser atirada aqui da forma como aconteceu. Vamos sair daqui logo e esperamos sua mãe lá na frente da casa.

- Pare já com isso, Mari. Não vê que isso tudo é coisa do meu irmão? Ele só está tentando deixar a gente com medo. Bem, você ele já conseguiu, mas eu não vou entregar os pontos assim tão facilmente. Ah, não vou mesmo.

- Não precisa ser tão corajosa sempre. Pense comigo. Como seu irmão teria jogado uma pedra dessas aqui, se tudo está devidamente cerrado em volta?

- Ele deve ter amarrado isso no teto mais cedo e acabamos nem percebendo.

- Amarrar uma pedra no teto? Com que intuito ele faria isso. E, pior, como poderia controlar para que ela caísse bem agora? Isso não tem a menor lógica.

- E o que tem lógica então, Mari? Acreditar que alguma coisa do além atirou essa pedra aqui dentro do quarto? Isso não me parece em nada uma suposição mais plausível.

Enquanto Mariana permanecia enrolada nas cobertas e morta de medo, a prima se abaixou e pegou a pedra na mão. Desenrolou o papel que a embrulhava e abriu-o com cuidado. Deu uma boa olhada e mostrou-o para a prima. "Favor manter o silêncio", eram os dizeres.

- Ainda acha que não é coisa do Bruno mesmo? Olhe essa letra! É dele, tenho certeza - disse Mônica tentando convencer a prima de que tudo não passava de uma grande brincadeira do irmão mais novo.

-  Tem certeza que a letra é mesmo dele?

- Absoluta. Eu reconheceria esse garrancho maldito até no escuro.

- Fico mais aliviada, mas ainda não compreendo como ele conseguiu colocar essa pedra lá em cima.

- Mas isso ele vai ter que nos explicar direitinho. Ou melhor, vai ter que explicar muito bem pra nossa mãe a hora que ela voltar - concluiu dizendo a última parte com a voz bastante alterada, quase gritando.

Novamente, um murro quase abriu a porta, seguido de um longo e arrastado grito de "Silêncio". Mariana sentiu todo o corpo estremecer de pânico. O frio percorreu toda a espinha e os braços se arrepiaram como nunca antes havia pensado ser possível. Já Mônica foi enfurecida na direção da porta. Abriu-a com tanta violência que a mesma quase se quebrou ao bater na parede. O ruído seco ecoou por toda a casa.

- Já chega dessa palhaçada! Nós não temos medo, ouviu? Por que não para com essa idiotice toda e aparece aqui na nossa frente para tomar uma lição. Vamos! Apareça aqui seu verme!

Mônica não pode continuar os insultos, pois foi interrompida por um grito muito estridente de Mariana, às suas costas. Virou-se e viu a prima paralisada olhando na direção do guarda-roupas. Se virou para aquele lado e lá estava uma senhora, pairando a alguns centímetros do chão. O vestido em trapos, que outrora havia sido de um azul profundo, mostrava algumas manchas escuras. Ela encarou Mônica nos olhos. Mesmo sem dizer nada, era clara a fúria em seu olhar. A coragem da garota se foi por completa e lágrimas escaparam acidentalmente de seus olhos. Tentou gritar ao passo que aquilo se aproximava dela, mas seus músculos não respondiam. Quando sentiu aqueles dedos finos e gélidos lhe tocarem os ombros, tudo se tornou uma profunda escuridão.

Abriu os olhos e estava deitada em seu quarto. Lá também estavam sua mãe, com os olhos circundados por olheiras profundas, junto de Mariana. Não se recordava de nada que havia se passado. Nem mesmo tinha ideia de quanto tempo havia dormido. Quando perceberam que ela estava acordada novamente, levantaram-se das cadeiras e vieram correndo em sua direção. Ela ainda estava meio confusa. Queria perguntar logo o que tinha acontecido com ela, mas não conseguiu. Uma dor aguda no fundo da boca se expandiu por toda a cabeça e quase desmaiou novamente. Voltou a si e lentamente a agonia tomou conta ao compreender que sua língua não existia mais. Agora havia apenas um resquício do músculo que fora brutalmente arrancado. Começou a chorar, assim como sua mãe e a prima inseparável.

quarta-feira, 24 de julho de 2013

CLASSY GIRLS

O lugar ainda não estava muito cheio. Melhor assim. Nos últimos tempos estava se tornando muito ranzinza. Lugares lotados demais lhe incomodavam um pouco. Incomodava bastante pra dizer a verdade. Todo aquele burburinho e pessoas se acotovelando já haviam sido o objetivo de toda festa. Não mais. Agora procurava um lugar mais calmo para conversar com os amigos e talvez conhecer alguém interessante. Mas dessa vez deu o braço a torcer foi naquele bar. Não era bem o que poderia se esperar de um bar. Em muito se assemelhava a uma pequena boate, principalmente pela música alta.

Pegaram uma cerveja e ficaram conversando sobre a rodada do futebol naquele final de semana. Esse assunto já havia lhe interessado antes, mas na atual condição do seu time preferia falar outras coisas. Correu o olhar pelas pessoas no bar. A padronização dos jovens lhe impressionava. As roupas eram as mesmas. Mas isso não era o pior. O que realmente lhe incomodava eram as ideias, os assuntos. Parecia que todo mundo pensava igual. Ou melhor, ninguém pensava nada. Era tão difícil se deparar com alguém interessante que desenvolvesse uma conversa menos superficial. Isso lhe cansava um pouco. Mas hoje estava disposto a deixar esse seu novo lado rabugento de lado. Queria se divertir e jogar conversa fora. Saíra de casa com a ideia de ser mais paciente e aproveitar aqueles momentos com os amigos.

Percebeu uma garota sozinha sentada em frente ao balcão. Fisicamente ela lhe atraiu. Era ruiva, com os cabelos muito lisos cortados rente ao pescoço. Usava um batom vermelho muito forte, que contrastava com a pele de um branco extremo. Trajava uma jaqueta de couro preta justa ao tronco e uma calça clara, que ele não pôde identificar bem a cor, pois a luz era meio difusa no ambiente. Ela conversava com um garçom e sorria vez ou outra. Tinha tudo para ser uma mulher interessante. As aparências podem enganar, mas era inegável o ar de determinação que ela transmitia. Mas poderia estar enganado. Acabou por suprimir o desejo de ir até lá e puxar qualquer assunto. Nunca fora tão desinibido assim. Raras vezes tinha iniciado uma conversa com alguma garota sem que houvesse um mínimo sinal da parte dela.

Os amigos continuaram conversando sobre assuntos diversos. Falaram sobre os filmes que haviam estreado naquele final de semana. "Este último do Johnny Depp é muito bom", disse um. "Mas os filmes dele são sempre muito bons", completou outro. Preferiu não entrar nessa conversa e expor a lista de razões pelas quais achava o ator em questão muito supervalorizado. Toda vez que isso acontecia ele acabava se deparando um incansáveis advogados do ator. E, não importava os argumentos de usasse, sempre saía da conversa como uma pessoa chata que não sabia reconhecer um bom talento. Continuou observando as pessoas ao redor, cada vez mais seu olhar se prendendo àquela garota. Ela continuava conversando com o garçom e rindo várias vezes. Além de tudo é bem humorada, pensou consigo.

Ela raramente olhava para quem estava ao redor. Parece que as pessoas aqui também não são interessantes para ela. Se ela for tudo que parece é melhor mesmo que eu não vá até ela puxar algum assunto. A paixão pode ser repentina. Agora nem sabia sobre o que os amigos conversavam. Aquela presença lhe dominava e não conseguia parar de olhá-la. Ela se virou calmamente, observando as pessoas à sua volta. Quando seus olhos encontraram os dela, um discreto sorriso foi lançado em sua direção. Não respondeu logo de cara. Provavelmente era outra pessoa que havia chegado. Talvez fosse o namorado. Com certeza uma garota dessas não está sozinha. Ela fixou o olhar nele e acenou. Agora tinha certeza. Era para ele que se dirigia. Esqueceu completamente dos amigos e deixou-os tagarelando sobre o que quer que estivessem falando.
 
- Uma cerveja, por favor - falou se dirigindo ao garçom.

- Essa desculpa pra começar algum assunto comigo não vai colar, sua cerveja ainda está cheia - disse ela com um sorriso aberto - Lígia - completou lhe estendendo a mão.
 
- Rodrigo. E preciso mesmo pegar outra cerveja, essa aqui já está quente.
 
- É, eu percebi mesmo que você só estava segurando a garrafa, mas não estava bebendo nada. Já deve estar terrivelmente quente mesmo.
 
- Então você estava me observando, suponho.
 
- Estava. Há um bom tempo. E você demorou um pouco para notar. Achei você diferente. Me passou a impressão de que não é do mesmo tipo que enche esse bar sempre. Não sei bem porque, mas me passou um impressão de ser mais interessante que a maioria. E gostei do seu estilo.
 
- Meu estilo? Olha, por essa eu não esperava.
 
- Gostei da sua camiseta. Darth Vader? Passa a ideia de uma pessoa bem humorada e que gosta de cinema. Será que acertei?
 
- Que gosto de cinema você acertou em cheio. Bem humorado, acho que você mesma vai precisar me falar mais no final da noite.
 
- Prometo ser sincera.
 
- Espero que seja.
 
- Eu sempre sou, mas isso não é necessariamente um ponto positivo. A minha resposta vai depender mais de como você vai se comportar - deu um sorriso e uma piscada singela.
 
- E você é da cidade mesmo? Nunca te vi nesse bar antes. E olha que eu costumo frequentar esse lugar com certa frequência. Pelo menos costumava.
 
- Não, na verdade sou de outra cidade, mas moro aqui há algum tempo. Há muito tempo, na verdade, mas estava viajando nos últimos dois anos e só voltei ontem.
 
- Viajando por onde? Se não for muita intromissão minha.
 
- Claro que não. Viajei pela Europa nesses tempos. Conheci vários países, mas fiquei quase nove meses na Áustria. Sou de lá. Minha família é de lá, na verdade.
 
- Interessante, tenho muita vontade de conhecer a Europa. Toda aquela cultura. Deve ser uma experiência fantástica.
 
- Isso é o que mais me atrai a viajar por aqueles países. Já conheci outros cantos da Terra, mas nada se compara ao velho continente europeu. A cultura, as artes, a história parece estar viva em cada rua, em cada prédio. Você deveria ir até lá.

A conversa continuou e os dois pareciam ter se esquecido completamente de tudo ao redor. Era como se já fossem velhos conhecidos. Quem diria que naquele dia Rodrigo encontraria alguém tão interessante. A atenção de ambos só foi tirada da conversa quando começou a tocar Doom and Gloom. Ele acabou cantarolando alguns versos entre um gole e outro na cerveja. Percebendo isso, ela não se conteve.
 
- Você gosta dos Stones?
 
- Na verdade sou simplesmente fascinado por eles.
 
- Mais uma coisa em comum então. Eu amo tudo que eles já fizeram.
 
- Eu tenho a discografia completa deles em meu computador. E várias músicas no celular também, é claro.
 
- Fico realmente impressionada como eles ainda conseguem fazer músicas nessa qualidade, depois de tanto tempo de carreira.
 
- Eu também. Essa música que está tocando é a prova disso. Depois de 50 anos eles ainda conseguem criar algo assim. Algo que seja bom e atual, mas que mantém a cara deles.
 
- Nossa, eu penso exatamente a mesma coisa. Mas, e a velha questão?
 
- Qual?
 
- Beatles ou Rolling Stones? Pense bem, porque essa resposta é muito importante para a minha avaliação a seu respeito, mocinho.
 
- Eu gosto das duas.
 
- Não vale. Tem que escolher uma.
 
- Ah, então eu fico com os Stones. Resposta correta?
 
- Não sei, depende dos motivos. Me convença.
 
- Bem, antes de tudo, volto a dizer que gosto das duas bandas. Mas eu acho que os Stones são mais versáteis. É muito diferente o que eles fazem em cada disco, mas mesmo assim eles mantém alguma coisa que é só deles. Mal a guitarra começa os primeiros acordes e eu sei que é uma música deles. Não sei explicar muito bem o que é, mas tem algo deles em todas as músicas. E então? Resposta certa?
 
- Corretíssima! Eu penso exatamente o mesmo.
 
- Bom então eu devo pegar meu prêmio agora, suponho.
 
- É, você merece. Respondeu corretamente e ainda complementou com bons argumentos - e deu-lhe um suave beijo no rosto.
 
- Esse prêmio foi muito pouco pelo esforço cerebral que tive agora - completou ele, segurando levemente a cabeça dela e levando seus lábios calmamente na direção dos dela.

- Calma lá, rapazinho - protestou quando já estavam quase se beijando, empurrando-lhe com um mão no peito - já devia ter percebido que não sou do mesmo tipo de garota que costuma frequentar esse bar. Não beijo nesses bares, querido. Entendo seu esforço em criar uma boa argumentação na resposta. Mas, para os meus padrões, o prêmio foi mais que adequado. Desculpe, mas eu sou assim. As pessoas que vêm a esses bares só procuram diversão e nada mais. Não se importam com os sentimentos dos outros, só querem curtir o momento. Mas eu não sou assim. E fujo desse tipo de pessoa.
 
-  Mas por que isso? Nunca dá uma chance para ninguém?
 
- Sim, dou muitas chances, como estou dando a você. Se você realmente se interessar, não vai ligar de conversar comigo sem que haja algo além disso. Quem sabe outro dia não rola alguma coisa a mais?
 
- Entendo. Mas não quer dizer que concordo.
 

Ambos riram e continuaram conversando durante muito tempo. Ela saiu um momento para ir ao banheiro e ele virou-se de frente para as pessoas no bar, mas permaneceu sentado com sua cerveja. Os amigos continuavam cercando cada garota que passava em torno deles. No fim das contas, mesmo que não conseguisse arrancar sequer um mísero beijo  dela, já teria valido à pena passar a noite toda apenas conversando. Ela voltou bem no momento em que começou a tocar Dream".

- Nossa, como eu amo essa música. É a minha favorita do Fleetwood Mac. Vamos dançar! - disse ela já puxando-lhe pela mão.

Abraçaram-se e dançaram lentamente. Ela apoiou a cabeça em seu peito e ele sentiu seu perfume. Havia algo angelical naquela garota. Apenas estar tão próximo a ela fazia com que ele experimentasse as melhores sensações que poderia imaginar. Ela lhe transmitia paz. Começou a cantarolar sem nada mais dizer - Thunder only happens when it's rainning. Ela virou-se para ele e completou - Lovers only love when they're playing - e sorriu no canto dos lábios. Ele não se conteve e, mesmo sem pensar, seu rosto moveu-se na direção do dela, que virou-se lentamente.
 

- Não se afobe, menino. Já lhe disse que sou outro tipo de garota. Tudo está perfeito, mas não passará disso. Não aqui. Não hoje.

Permaneceu ali. As mão envolvendo a cintura dela, os lábios encostados na sua cabeça. Estava tudo tão perfeito daquele jeito. Os pensamentos pareciam ter simplesmente desaparecido de sua mente. Nada mais importava. Ninguém mais havia ao redor. Eram apenas eles. Não tinha a mínima ideia de quanto tempo passaram assim. Voltou a si quando, ao redor, as pessoas dançavam de forma frenética. Se deu conta de que agora tocava Little Less Conversation.
 
- Acho que estamos no ritmo errado para se dançar Elvis - disse ao pé do ouvido dela.
- Nossa, nem percebi que música estava tocando. Estava tão bom que simplesmente me perdi em meus pensamentos.
 
- Por mim eu continuaria assim com você pelo resto da noite, mas tenho medo que acabemos tomando alguma cotovelada.

Voltaram ao bar e pediram mais uma cerveja. O tempo parecia não passar ao lado dela. Falaram mais sobre música, cinema, literatura. Até sobre política. Os amigos chegaram e o chamaram para ir embora, mas ele se recusou. Disse que ficaria mais e depois arranjaria um jeito de voltar para casa. As luzes do bar se acenderam e, só então, se deram conta da hora. Precisavam partir porque o estabelecimento já estava para fechar.

Ele a acompanhou até o seu carro. Ela só havia conseguido encontrar uma vaga no final de um beco lateral, bem em frente a um lago que ficava nos fundos do bar. O Sol logo iria dar as caras.
 
- Desculpe-me por hoje, você esperou até agora e nem foi embora com seus amigos. Mas esse é o meu jeito mesmo - disse ela encostada no carro, segurando-lhe pelas mãos.
 
- Não há nada do que se desculpar, foi a melhor noite da minha vida. Quando nos encontramos de novo?
 
- Não vamos. É por isso que me desculpo, pelo que ainda está por vir. Mas é minha natureza, não posso lutar contra. Infelizmente terei de roubar seu coração. Mas quero que saiba que gostei de você de verdade. Você é uma pessoa especial.

Ele tentou dizer algo, mas quando os lábios dela tocaram os seus qualquer pensamento simplesmente se esvaiu de sua mente. Nunca sentira algo tão forte. Era como se estivesse em um sonho, tudo calmo ao redor. A paz lhe tomou conta do corpo. Sentia uma infinidade de sensações de uma só vez. Era como se nada mais fizesse sentido. Não haviam mais problemas. Não haviam mais assuntos pendentes. Tudo poderia ser esquecido. A única coisa que importava era prolongar o quanto pudesse aquele momento.

Já passava das oito horas e o Sol começava a esquentar, quando Antônio entrou correndo no beco que dava acesso ao lago onde se exercitava toda manhã. Seguia perdido em seus pensamentos e na música que saía de seus fones. Mas algo fez com que voltasse à realidade. A cena que presenciou fez seu estômago revirar. Se aproximou para verificar melhor do que se tratava. Tudo era como um filme de terror.

Atrás de uma caçamba de entulhos, um corpo estava estendido. Era tão branco como uma folha de papel, como se sequer uma gota de sangue houvesse ali. Estava completamente enrugado, como nenhum velho poderia ser em vida. Era estranho que não houvesse sangue espalhado pelo local ou pelo corpo daquele senhor. Provavelmente a morte havia sido causada pelo imenso buraco que havia em seu peito. Chegou mais perto e não conteve a ânsia de vômito. Só viu um imenso buraco e um vazio onde outrora estivera seu coração. Mesmo ali não se podia identificar nada de sangue, apenas algumas gotas que haviam manchado a camiseta com a grande face de Darth Vader.

PS 1: O autor compactua com as opiniões de Rodrido sobre Johnny Depp e, principalmente, sobre Rolling Stones.

PS 2: O conto foi inspirado na música Classy Girls (The Lumineers)

Well, she was standing in a bar
I said: "hello how do you do?"
She handed me a beer with a kangaroo
She spoke of places I had never been
That she had travelled to
And we slow danced alone to faster tunes
I made her laugh, I made a pass
I showed her my half-dollar ring, she said:
"That's pretty cool
But classy girls don't kiss in bars, you fool."
So later on the crowd calmed down
And I believe it was as if
Something drew me closer to her lips
Picture my surprise when I had
Tried to lean in for a kiss
And she just smiled and turned her head down quick
I asked her why, and she replied
It was nothing I was doing wrong
It's just what it is
But classy girls, don't kiss in bars like this
No, classy girls don't kiss in bars
Boys will break their backs and hearts
But it's all right
The hardest part is through.