domingo, 12 de outubro de 2014

Contos Sonoros - SAPATILHAS


Venho mais uma vez trazer um conto que foi publicado no Contos Sonoros no Meia-Lua pra Frente e Soco. Se você ainda não conhece o projeto, confira AQUI, onde autores narram um conto. Você pode ouvir no site ou fazer o download.

Desta vez foi publicado o conto "Sapatilhas", que trata de uma garota que precisa encontrar seu par de sapatilhas para a apresentação de ballet na mesma noite. O que ela será capaz de fazer para conseguir o que quer? E quais serão as consequências?Confira o "Contos Sonoros 28"  AQUI e o texto que já saiu aqui no blog, está AQUI.

Mais uma vez, muito obrigado a toda equipe do Meia Lua por mais uma oportunidade de mostrar o meu trabalho, principalmente ao André Bacchi pela atenção e ao Caio Nobre pela excelente edição! 

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Contos Sonoros - QUANDO A VIDA LHE SORRI



Mais um conto meu foi publicado no Contos Sonoros no Meia-Lua pra Frente e Soco. Se você ainda não conhece o projeto, confira AQUI, trata-se da narração de contos, geralmente pelo próprio autor. Você pode ouvir no site ou fazer o download.

Desta vez foi publicado o conto "Quando a vida lhe sorri", um conto alternando o presente e flashbacks. Aqui não há terror, pelo menos como geralmente vemos, mas sim angústia. Confira o "Contos Sonoros 25"  AQUI e o texto que já saiu aqui no blog, está AQUI.

Mais uma vez, muito obrigado a todo mundo do site do Meia Lua por mais uma oportunidade de mostrar o meu trabalho e ao André Bacchi pela excelente edição! 

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

SAPATILHAS







Todo o quarto era uma grande bagunça. Tudo havia sido revirado inúmeras vezes e até agora não encontrara. A esperança que ainda restava era de que tivessem caído por trás das gavetas do guarda-roupa. Sentada no chão, deu um tranco mais forte e removeu a parte do móvel. Haviam miudezas de toda espécie, mas as sapatilhas não estavam lá. Ainda passou a mão automaticamente, embora racionalmente soubesse que nada encontraria naquele lugar. E agora? Isso não pode estar acontecendo, não pode.


Quase como um zumbi se levantou vagarosamente, sem dar muita atenção para os objetos espalhados pelo quarto. Caminhou até a cama sobre a qual o vestido repousava solitário. Enquanto uma lágrima finalmente saltava e escorria preguiçosamente pelas maçãs do rosto, sentou-se. Por que fazem isso comigo? Qual a razão de tamanha raiva? Ela sabia. Era tudo mais uma brincadeira de suas irmãs. Sempre fora assim. A maior diversão delas era vê-la em desespero. Não diria que dessa vez tinham passado dos limites, pois há muito seu sofrimento não podia ser justificado por qualquer tipo de satisfação que alguém poderia sentir.


Ali ficou por alguns momentos. Os longos dedos finos tocaram o tecido do vestido, de um tom abóbora tão claro que era quase rosa. Sentiu as delicadas pedras de vidro, que pareciam pequenos cristais. Nunca mais terei outra chance depois de hoje. Tanto esforço para chegar até aqui. Tudo para nada. A respiração, que antes era sem ritmo, agora definitivamente começava a lhe faltar, devido aos soluços e ao choro. Ao lado da cama estavam as credenciais e o programa da apresentação daquela noite. Olhou o celular. Não tenho mais tempo, menos de meia hora e não há como chegar lá. Sem certeza alguma, apanhou tudo e colocou na mochila surrada. Cuidadosamente, ajeitou o vestido e os adereços que usaria. Vestiu uma camisa xadrez sobre a camiseta preta com o símbolo de uma banda de rock e deixou o quarto. Sabia que quando todos voltassem mais tarde ela seria duramente repreendida. Que a colocassem para fora de casa, se fosse o caso. No auge de seus treze anos talvez fosse um bom momento para pôr um basta a tudo aquilo.


Bateu a porta da casa com força. O subúrbio estava calmo, como sempre. Onde ir era tão incerto quanto o que fazer. Devia ter ligado para alguma outra colega e pedido um par de sapatilhas emprestado, mas agora era tarde. Talvez pudesse ter ido logo ao teatro e contado tudo à professora, mas a imagem dela a repreendendo surgia em sua mente. Assim como as irmãs rindo de sua desgraça. Apertou forte o colar que tinha com a foto da mãe. Se você ainda estivesse aqui, nada disso estaria acontecendo. Nada disso nem nada do que tenho passado. A única certeza era de que não podia ficar ali parada, esperando.


As pernas se moveram por conta própria. Apertava o vestido contra si enquanto se perdia em pensamentos. Tocou o portão recém pintado e notou que o celular tocava. Apanhou-o da bolsa, mas não teve coragem de atender. O que vou dizer? Não posso decepcioná-lo. Não há o que fazer. Mais uma vez naquele dia, não atendeu a ligação. Não se conteve e veio aos prantos, deixando os joelhos suportarem o peso do corpo. Socou o chão com força e, com a cabeça erguida, permaneceu alguns instantes olhando as estrelas e a lua alta no céu. Fechou os olhos e deixou que as lágrimas secassem, mesmo que novas insistissem em surgir.


— O que acontece, criança? O que pode afligir de maneira assim cruel uma criatura ainda tão jovem para conhecer o que é um verdadeiro sofrimento? — uma voz a trouxe de volta.



— Hoje era o meu grande dia — disse se levantando e apertando o vestido contra si. A senhora que morava na casa ao lado lhe dava arrepios, como sempre. Era uma senhora bem vestida, sempre muito bem cuidada, não dispensando uma pesada camada de maquiagem, mas ela sempre tivera muito medo daquela mulher. Mesmo assim, a garota parou em frente a ela. Além do mais, estava decidida a tomar as rédeas de sua vida e talvez começar superando estes medos fosse um bom começo.



— A grande noite? E o que poderia haver nesta tão comum noite para desta especial forma ser chamada?



— Isto — disse, retirando o programa do espetáculo — hoje eu finalmente iria me apresentar no teatro principal. E ainda como protagonista.



— Bailarina, criança? Desde minha mais tenra idade, toda dança me fascina, mas nada é tão sublime como o ballet. Nada. Mas, creio ter ouvido a palavra “iria”. Por que razão não irá mais?



— Não sei o que aconteceu com minhas sapatilhas. Na verdade eu sei exatamente o que aconteceu, mas não consegui encontrá-las.



— E acaso isto é o mesmo que o final dos tempos? — disse a senhora se aproximando e tocando o vestido com as mãos enrugadas.



A garota puxou-o contra si sem muito disfarçar. Um asco tomou conta dela. A mulher percebeu e com um sorriso de escárnio tocou novamente o tecido, ainda olhando fixamente a menina.



— Mas que belo vestido é este que tem em suas mãos e que lástima seria perder a apresentação de hoje. Uma falta imperdoável destas levará teu nome à desgraça em todas as companhias de dança da cidade e teu futuro se esvairá como as lágrimas que agora secam em teu belo rosto — terminou passando os dedos sob os olhos da garota, que deu um passo para trás.



Com o cenho fechado, virou-se para seguir, ainda sem rumo. A senhora repousou a mão direita no braço da garota e puxou-a de volta. Embora fosse muito velha as mãos eram inesperadamente firmes.



— Por que tanta pressa? Se não há o que ser feito, talvez juntas possamos encontrar uma solução, o que me diz, doce criança a desabrochar?



Era a primeira vez que trocava mais que um “bom dia” com aquela senhora, mas a forma como ela falava lhe parecia estranha. Desde o início notou que ela falava de uma maneira um pouco mecânica. Era como se tivesse que se adaptar ao vocabulário que usava. Pensou que poderia ser uma estrangeira, mas não havia sotaque, era a forma como falava que causava incômodo.



— E como a senhora poderia me ajudar? Por acaso tem um par de sapatilhas para me emprestar?



— Ora, além de bailarina ainda é alguma espécie de adivinha? Outrora fui uma das maiores bailarinas que esta cidade já viu, criança. Ainda guardo os apetrechos que usei naquela época. Venha comigo e talvez encontremos algo que lhe caiba.



— Mesmo assim, faltam apenas 15 minutos para a meia noite, quando começa minha apresentação. Como eu poderia chegar lá e me aprontar a tempo? Não há o que ser feito.



— Incredulidade. Eis o maior defeito humano — a velha disse, tocando o ombro da garota. Ela nem chegou a piscar os olhos e o sol ainda começava a se pôr no horizonte. Alguns raios ainda conseguiam se esgueirar por entre as casas, atingindo-as nos rostos.



— Mas, como? O que você fez?



— Apenas te dei um pouco mais de tempo. Venha comigo!



A antiga casa causava uma sensação estranha. Embora fosse ricamente decorada, era como se estivesse entrando em uma espécie de jaula. Opostas à porta, imensas estantes abarrotadas de livros subiam até quase encontrar o teto. Atrás de si, junto à porta, o alto das paredes era repleto de cabeças de animais empalhados. Sobre vários móveis pequenos animais inteiros, quase sempre alguma ave, repousavam com olhar perdido. Correu os olhos sem parar em nenhum, até que à sua direita, em uma pequena mesa de madeira, um coelho lhe chamou a atenção. Não havia sido preparado em sua posição natural, como os outros, mas quem o montou fez questão de passar a impressão de que o animal fora acuado. O artista com certeza teve trabalho, mas o resultado era hipnotizante. Os dentes estavam arreganhados na direção de quem o olhasse e os olhos de vidro pareciam estranhamente reais, pois era possível notar o terror do animal. O provável momento da execução manteve-se incrivelmente fiel, bem como a expressão feroz, frente à morte inevitável.



Os pés da garota tocaram a borda do tapete que cobria quase toda a ampla sala. Parou e olhou a imagem. As cores eram muito vivas e vibrantes. Chamas se alastravam por uma floresta no final do outono, enquanto animais tentavam fugir. As chamas vermelhas se misturavam às folhas alaranjadas das árvores. Haviam árvores já sem folhas que ardiam como um braseiro. Em meio ao fogo era possível notar algumas criaturas que já haviam encontrado seu fim e algumas que pareciam ainda lutar por suas vidas, em vão. Algumas eram claramente animais, mas outras estavam tão retorcidas que era quase impossível dizer do que se tratava. A fumaça subia escura em direção ao céu azulado do final da tarde. Era como se dançasse alegre pela destruição que era causada embaixo. Em alguns pontos parecia formar imagens de rostos sorridentes. Mais que sorrisos, era uma expressão de êxtase. Uma das figuras parecia olhar diretamente para quem a observava. Um olhar penetrante e estranhamente atraente. Era como se quase pudesse ouvir uma voz lhe chamando. Apenas um sussurro, que ia ficando mais compreensível a cada instante, enquanto o rosto também se tornava mais real. Parecia que a cada vida que era tomada pelas chamas, aquele rosto adquiria mais energia. Quase podia ouvir as chamas estalando e os urros de dor das criaturas na floresta. O cheiro de madeira queimada era forte. A figura assustadora continuava a lhe olhar fixamente. Era como se não houvesse mais nada em volta, apenas a fumaça espessa e escura. Um cheiro de carne e pelos queimados inundava o lugar. Os urros ficavam mais altos, enquanto a fumaça tomava conta de tudo, girando e girando, cada vez mais rápido. O rosto na sua frente era cada vez mais nítido. Os sons foram dando lugar a ao sussurro daquela face que se comunicava sem mover os lábios. Cada vez era mais nítido. Já era quase compreensível.



— E não é que encontrei algo perfeito! — a voz da senhora a fez voltar à realidade. Ela estava parada bem no centro do tapete, embora não se lembrasse de ter andado até ali. Não havia face alguma formada da fumaça. Uma ilusão de ótica, lembrou-se de que algumas pinturas, quando vistas de pontos diferentes, formam imagens. Com certeza era o mesmo que acontecia com aquele tapete.



Virou-se para a senhora atrás de si. Sobre o velho piano repousava um par de sapatilhas abóbora, com pequenas pedras que pareciam cristais. Caminhou até lá e as tomou em suas mãos. Era possível perceber que eram muito antigas, mas estavam incrivelmente bem conservadas, como se só tivessem sido tiradas da caixa naquele instante.



— É como se tivessem sido criadas para serem usadas por ti nesta noite — disse a velha, tirando-as de suas mãos com um sorriso estranho no canto dos lábios — vamos ver se lhe servem. Acredito que eu tivesse a mesma idade de ti quando elas foram feitas, mas nunca tive a oportunidade de usá-las.



Entraram na sala ao lado. O aposento era cercado de quadros imensos. Da família da velha senhora, com certeza, a julgar pela forma como se pareciam com ela. Mas, estranhamente, não havia sequer um quadro de uma figura masculina. Era como um museu, de onde se podia observar a passagem dos séculos através das roupas e penteados daquelas mulheres. Sentada em uma poltrona, a menina estendeu o pé direito para que a senhora lhe colocasse uma das sapatilhas. Parecia que era a sua própria ali, de tão perfeita.



— Eu sabia — falou a senhora com as mãos cruzadas em concha sob seu ventre — nesta idade os pés das garotas não variam muito de tamanho. Apenas os seus corações se diferenciam, bem como seus sonhos.



— Ficou mesmo muito boa. Não sei como posso lhe agradecer por isto. Agora vou poder dançar e ele não vai me achar uma idiota desorganizada.



— Ele? Creio que não é de teu professor que fala — interrompeu a senhora, abaixando-se e tirando a sapatilha do pé da garota — quem seria este “ele” tão especial? Alguém da companhia? Ou alguém que irá lhe assistir esta noite?



— É o filho do prefeito. Ele irá dançar comigo hoje e não quero desapontá-lo, porque somos muito amigos — foi o que saiu de repente, enquanto suas bochechas coravam.



— Sim, claro, um amigo demasiado especial que você não quer desapontar. É realmente muito bonito quando estas...amizades desabrocham nesta idade. Mal me recordo como foi comigo, mas sempre vejo o mesmo sentimento nos corações das garotas ao longo dos tempos.



— Bem, preciso ir agora, porque ainda vou pegar o metrô para chegar lá na hora. Muito obrigada.



— A minha intenção foi de lhe ajudar, criança. Mas não disse que lhe entregaria as sapatilhas assim, sem que faça por merecê-las — a velha as manteve afastadas da menina — preciso de uma prova. Mas prova alguma seria demais perante a beleza do amor. Ou da amizade, como queira.



— Tudo bem, é justo — respondeu a garota automaticamente — poderá me pedir o que quiser quando eu voltar, irei te ajudar com muito prazer — completou com um sorriso desajeitado.



— Criança, acho que não fui muito clara. Deve fazer por merecer tal presente e isto significa que o que fará deve ser feito antes de ter o presente consigo. Não se preocupe com as horas. Creio que já tenha notado que isto não será problema algum. Teu tempo será mais que suficiente.



— O que devo fazer então?



— Entenda, para conseguir algo que seja importante, é preciso se desfazer de algo tão importante quanto. Não podes pagar por nada com um valor abaixo do que vale. E se não pagar antes de usufruir da graça, não lhe dará o devido valor. Já não é mais uma menina, pois floresceu para o amor. Então, é chegada a hora de provar que as amarras da infância se foram completamente. Quero este colar que traz consigo. O que tem a foto de tua mãe.



— Meu colar? Mas é muito importante para mim. É a única lembrança que guardo dela, além de que não terá nenhuma serventia para a senhora. Não me obrigue a fazer isto.



— Não lhe obrigarei a nada, minha cara. Apenas lhe digo qual o preço para que tenha posse destas sapatilhas, se acaso elas lhe forem importantes.



A garota apertou o colar em suas mãos. Olhou para as sapatilhas e se perdeu em pensamentos. Esta noite é muito especial. Finalmente vou dançar com ele. É minha grande chance de impressioná-lo. Mais que isso, é minha chance de mostrar que sou especial. Poderei provar isto a todos aqueles que têm me maltratado. Se não for nesta noite, quando será?



— Exato, esta é tua grande noite, criança. E tenho certeza que tua luz resplandecerá no espetáculo e tua vida será outra daqui em diante.



— Como sabe do que estou pensando?



— Só preciso de uma prova de tua coragem — a velha continuou falando, ignorando a garota.



— Tudo bem então —arrancou o colar sem pensar muito e ofereceu à velha.



— Não aqui. E não agora. Deve me entregar o colar em outro local, um local especial. Quando sair de minha casa, passe na catedral e, lá, deixe o colar. Assim que fizer isto, as sapatilhas serão tuas.



— Na catedral? Já estou aqui com você. Basta pegar o colar e me entregar as sapatilhas de uma vez.



— Não lhe cabe questionar, criança. Apenas siga as regras. Deixe o colar na catedral, apanhe o que é teu e siga para a grande noite de tua vida.



— Mas onde exatamente eu tenho que deixar?



— Reconhecerá o local quando lá estiver. Simplesmente, saberá que encontrou. Mas ninguém pode saber onde está ou o que faz. Concorda?



— Sim, concordo.



— Muito bem. Então, para selar nosso acordo e nossos termos — disse a senhora, agora em posse de um punhal prateado. Apertou-o contra a palma da própria mão até que um filete de sangue escorresse — agora é sua vez, me dê tua mão. Lembre-se que esta é tua última chance de voltar atrás.



— Já disse que concordo! — disse a garota irritada, tomando o punhal e fazendo um leve corte na palma da mão.



— Muito bem, agora vá e faça o que combinamos. Não se esqueça das regras e tome cuidado para não descumpri-las em nenhum momento. Esteja sempre atenta a tudo que faz. Equívocos não serão tolerados. Siga em busca da sua grande noite, criança. Você já conhece a saída — dito isso, virou-se e desapareceu na penumbra do cômodo seguinte.



A garota deixou a casa e partiu. Sua mente ainda tentava processar tudo que tinha acontecido até então. Perdida em pensamentos e sensações caminhou pelas ruas que já estavam quase completamente cobertas pela noite. Olhou para o colar com a foto da mãe. Talvez esta seja a última vez que vejo esta foto, mamãe, mas não será a última vez que penso em você. Este colar não é nada perto do amor que verdadeiramente sinto em meu coração. Pensando bem, parece que nesta hora, você é quem irá me ajudar mais uma vez. Assim como tem me ajudado a suportar tantas provações. Só nós duas sabemos. Só nós. As pernas pararam quase que por conta própria. Ela estava de frente para a antiga catedral. Não conseguia recordar o caminho que tinha feito até ali. Era como se tivesse percorrido apenas alguns metros, mas a imponente igreja era muito distante. Agora a noite já dominava tudo e a lua se erguia esplendorosa no céu.



Folhas secas espalhadas pelo pátio se quebravam sob o peso de seus pés e o vento gelado começava a incomodar um pouco. A luz da lua permitiu que caminhasse sem dificuldade até a entrada, entre gigantescas imagens de São Pedro e São Paulo, que pareciam observá-la, como dois guardiões prontos e dispostos a barrar qualquer invasor. Como vou encontrar o local exato em uma igreja tão grande? Encostou o ombro na pesada porta de madeira esculpida com imagens dos passos da paixão de Cristo. Estava aberta. No interior, tudo estava completamente apagado e apenas uma fraca luz vermelha no altar indicava onde estava o sacrário. Apanhou o celular na bolsa e apertou um botão qualquer, virando-o para o chão branquíssimo de mármore. A luz do aparelho permitia que pudesse enxergar alguns passos à frente.



Seguiu devagar pelo corredor central, movimentando o celular na direção dos bancos e paredes, buscando algo que lhe chamasse a atenção e que indicasse o lugar exato para cumprir sua missão. Estátuas e pinturas de santos acompanhavam cada passo seu com o olhar perdido. O celular se apagou. Droga, por que hoje em dia ainda fazem celulares sem lanterna? Apertou novamente alguma tecla e a luz do visor permitiu que visse mais alguns metros adiante. O silêncio era apavorante e tranquilizador e, em espaços constantes, era quebrado pelo ruído dos sapatos no chão, que ecoava em todas as direções. Será que se alguém estivesse aqui e visse essa luz sairia correndo? Pensaria que era uma alma? Tomara que não haja ninguém por aqui, porque o mais provável é que pensem que sou algum ladrão. Novamente a luz se apagou. Apertou mais algumas teclas sem olhar e deu mais um passo, já se aproximando do fim do corredor.



Examinou o altar com cuidado. Haviam pinturas de baixo até o teto. À esquerda, a chegada das almas aos céus era anunciada por anjos majestosos empunhando instrumentos musicais e armas, quase sempre longas lanças douradas, que contrastavam contra o profundo azul e branco das nuvens. À direita, demônios de todas as formas recebiam com sorrisos maliciosos aqueles que não tiveram uma vida correta e passariam a eternidade em sofrimento. Almas apavoradas gritavam e tentavam escapar, sendo apunhaladas por pesadas espadas em brasa. De ambos os lados, duas portas davam para corredores que levavam às sacristias. Do lado esquerdo a porta era vigiada pela estátua de pedra de um imenso falcão com as asas abertas, logo abaixo do local de onde surgiam raios de luz na pintura. Do outro lado a madeira sobre a porta era toda trabalhada na forma de uma serpente que se esgueirava e repousava preguiçosamente sob os pés da figura austera que lançava chamas sobre as almas fugitivas. Após examinar com cuidado cada local, nada lhe chamou a atenção ali. Virou-se para a direita, rumo à sacristia.



Os sapatos fizeram um barulho mais alto quando tocaram o chão daquele setor, que era de madeira. Um amontoado de imagens quebradas fazia guarda do local. Anjos com asas partidas e a pintura da pele descascada, santos sem membros, pinturas rasgadas. Esses eram os adornos do corredor à sua frente. O local havia adquirido um profundo tom de púrpura e laranja, causado pela luz da lua, que atravessava os vitrais pelo lado direito do prédio. Seguiu aquele caminho estreito, utilizando o celular para observar os cantos onde a luz não alcançava, principalmente nos locais onde a lua era tampada pelas árvores do lado de fora, já quase sem folhas pelo outono. Em alguns momentos, as sombras formavam uma teia no chão e na parede oposta.



Seus ouvidos notaram um barulho peculiar. Era como como uma espécie de som eletrônico. Familiar, mas parecia estranho naquele cenário. Durava alguns poucos segundos e parava, para recomeçar mais uma vez. Olhou para trás e em volta mas não viu nada. De onde vem isso? Se virou para frente e o som ficou mais alto, emanado de algum lugar próximo.



— Alô? O que foi?



Virou o celular e percebeu que era dali que vinha o ruído. Sem querer, apertando qualquer tecla, havia ligado para alguém. O coração disparou quando viu o que tinha feito. Liguei para ele, logo para ele. O que vou fazer agora?



— Alô? É, oi! Tudo bem? — foi o máximo que conseguiu dizer na hora.



— Tudo sim. Muito nervosa para hoje? Foi bom você ter ligado, eu queria mesmo conversar com você antes da apresentação. É bom que os parceiros estejam em sintonia numa noite como essa, não acha?



— Sim, claro. Estou um pouco ansiosa, mas acho que tudo vai dar certo — continuou andando, sem prestar muita atenção no que falava, com a cabeça baixa para observar cada canto.



— Isso é totalmente normal, eu também estou. Mas formamos um bom par e vamos tirar de letra esta noite. Você já está a caminho?



— Ah, logo eu... — parou ao avistar uma imensa estrutura de pedra que encerrava o corredor à sua frente. Só pode ser ali. Tem de ser. Tirou o celular do rosto para iluminar a estrutura em frente — tem que ser aquele mausoléu — soltou as palavras sem perceber que as estava falando.



— Mausoléu? Você está em algum cemitério? Que diabos está fazendo aí? — a voz do garoto era baixa, mas totalmente compreensível no silêncio daquele lugar.



Ela parou e observou as esculturas que formavam cenas de caça. O mármore branco adquirira um tom róseo pela luz que inundava o ambiente. Na base do túmulo, animais eram destroçados por cães e homens a cavalo, enquanto no alto de um bloco, figuras dos mesmos animais mostravam sua face austera e vingativa. No centro havia um imenso coelho trespassado por uma lança. Ainda vivo, arreganhava os dentes, em um misto de fúria e assombro, como um líder rebelde lutando enquanto suas forças não se esvaíam.



— Ei, me responde! Por que você está num cemitério? — o garoto continuava falando pelo telefone, mas a garota não dava muita atenção para isso.



Ela se aproximou um pouco mais. Podia sentir como o mármore era frio, mas da base da estátua do coelho parecia emanar um calor muito forte. Aproximou a mão e pareceu ouvir alguma voz, quase um sussurro. Olhou para trás, mas nada havia. Voltou novamente para frente e depositou o colar. Ouviu aquele sussurro mais uma vez, mas agora era quase possível distinguir uma voz.



— Que barulho foi esse? — disse o garoto assustado e sem entender porque era ignorado.



Ela sabia que já tinha feito o que devia. Tentou se afastar, mas não conseguiu. A voz começava a dominar os movimentos de seu corpo. Tudo ao seu redor parecia se mover lentamente. Lutava contra aquela força. Cada vez mais lhe faltavam as suas. Por conta própria, suas mãos se apoiaram na borda do mausoléu e ela subiu. Agora era como se toda a catedral estivesse se movimentando. Girando lentamente em torno dela. Apenas aquela estrutura na qual se apoiava permanecia imóvel. Seu corpo estava gelado, com exceção de suas bochechas, molhadas pelo choro.



— Por que você está chorando? O que está acontecendo? Me responda estou ficando preocupado.



Se sentia como uma marionete. Não conseguia dizer nada. Não conseguia controlar seus próprios membros.



— O que tem para mim? — agora o sussurro claramente havia se tornado uma voz, embora ainda muito baixa.



Sua mão agarrou o colar e estendeu-o na direção à sua frente. Seus músculos começavam a doer de tanto lutar contra os movimentos que seu corpo insistia em fazer naquela direção. Uma névoa marrom começou a rodear tudo em volta. O cheiro era forte e seus pulmões começaram a arder. A cada momento se tornava mais espessa. Não era mais uma névoa, era uma fumaça escura. Girava calmamente no princípio, para depois se tornar um redemoinho violento em sua volta, uma densa cortina que não deixava mais que a luz penetrasse. Não conseguia ver nada, além do coelho.



— Ah, o amor é tão lindo, não é mesmo? — a voz agora era facilmente ouvida, mesmo que não fosse possível identificar de onde vinha — por ele vocês se esquecem facilmente de tudo. Se esquecem das pessoas que sempre estiveram a seu lado. Foi assim tão simples renegar a mamãe, foi?



— Quem está aí com você? — o garoto estava apavorado do outro lado do telefone.



A fumaça havia coberto tudo por completo. Só havia a escuridão, quando uma luz azul muito fraca surgiu na sua frente. Os joelhos se dobraram. Ela parecia flutuar. Sentia como se os ossos estivessem se separando da carne. A luz ficava mais forte, à medida que adquiria um tom mais escuro. Fechou os olhos. De nada adiantou, continuava enxergado tudo. Virou a cabeça contra seu ombro, mas era como se ainda estivesse com a cabeça erguida e olhando em frente. Ainda via tudo. Involuntariamente, abriu os braços e curvou a cabeça para trás. Os olhos ardiam e a luz, agora púrpura, inundava tudo ao redor. Quase sem forças, conseguiu gritar:



— Eu não quero mais! Eu desisto. Estou na catedral! Preciso de ajuda! Vim aqui porque minha vizinha mandou que eu...



Num instante tudo desapareceu e lá estava ela, ajoelhada sobre o túmulo, com o celular em uma mão e o colar na outra. Tudo parecia como antes. Então, sentiu um sopro na nuca, como uma respiração, mas de um ar glacial.



— Este não era o acordo. Você não deveria dizer a ninguém onde estava, se lembra? — uma voz disse bem baixo em seu ouvido.



Ela já sabia que era a mesma voz. A mesma voz que emanava do mausoléu. A mesma voz que ouvira mais cedo ao olhar para o tapete. Aquela voz estranhamente familiar. Aquela voz que parecia ter lhe acompanhado desde o tempo em que suas memórias permitiam. Ela havia se esquecido. Mas agora se lembrava. Sempre estivera com ela. Sempre a acompanhara. Abriu as mãos e deixou o celular e o colar caírem. Ergueu a cabeça lentamente. Seu corpo estava gelado. Começou a se virar. Seus joelhos deslizaram sobre a superfície lisa do mármore. Os olhos fechados iam percorrendo as paredes da sacristia em sua mente. Os punhos se fecharam. Completou a volta. Estava de frente para aquilo. Abriu lentamente os olhos e encarou.



— O que foi isso? — do outro lado o menino tinha sido dominado pelo desespero — Meu Deus, por que você está gritando? Quem está aí com você? Me responda, por favor. O que houve? O que houve, Cinderella? Cinderella, me responda!




Agradeço imensamente ao meu grande amigo Vinícius Mendonça, ou simplesmente Widalgo, que me ajudou quase como um revisor neste conto. Muito do que agora está aqui só foi possível pelas sugestões e considerações do Vinícius.